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quarta-feira, 16 de setembro de 2020

SEU DEMA, EU, E O DEBATE.

Seu “Dema” e eu sempre fomos apaixonados pelo debate político. Por gostarmos muito, acabou se tornando um hábito a leitura sobre e a discussão política e político-econômica na nossa casa. Meu marido, meus filhos e eu sempre tivemos posicionamentos e adoramos uma polêmica. Em alguns debates concordávamos todos, noutros nem tanto e muitas vezes fomos absolutamente antagônicos. E, claro, em muitas questões há/havia um grupo que compõem/compunha a maioria e que sempre tenta/tentava convencer a minoria, e vice-versa. Antagônicos ou não, o importante é que ninguém por aqui é neutro e ninguém se furtava ou se furta ao debate. Seu “Dema” era um grande debatedor: já havia participado, inclusive, de debates políticos na TV local. Nossa posição antagônica em alguns temas fazia com que ele adorasse me provocar. Todos os dias qualquer um de nós tinha uma manchete, pauta ou tema para discutir, mesmo com as filhas morando em outro país.
Este hábito familiar perdeu muito com a partida precoce do seu “Dema”. Sem suas provocações, a coisa toda perdeu a graça. Além desta irreparável perda, a realidade vivenciada agora provoca em todos nós um desencantamento. A repetição cíclica das mesmas situações é desesperadora. Não há expectativas de transformações quando assistimos à repetição ‘ad infinitum’ dos mesmos comportamentos, dos mesmos erros, da mesma subordinação da política e dos políticos ao jogo sujo, tanto para a aquisição do poder, quanto para o enriquecimento ilícito. Sem suporte histórico e cultural para a análise, grande parte da população vive um retrocesso no plano do imaginário coletivo e apoia a desconstrução dos próprios direitos; condições conquistadas à duras penas são subtraídas num piscar de olhos, graças ao apoio possibilitado pelo efeito da multiplicação irrefletida na interpretação de um discurso mentiroso e extremamente nocivo. De forma geral, grande parte da população brasileira se deixa escravizar voluntariamente pela defesa de valores que não sabe avaliar, não interpreta, não entende. O reforço dos elementos de um imaginário latente alicia pelo sentimento de representação e empoderamento, utilizando-se de um discurso que usa Deus/Pátria/e Família como bordão principal, repetindo o que fez o Integralismo, movimento de ultradireita que formatou o nazifascismo no Brasil, e que se manifestou entre os anos de 1932 a 1937. O nazifascismo que compõem o Integralismo brasileiro atual conta com um meio de difusão que não havia no início do século XX: as redes sociais. Vistas e entendidas inicialmente como um salto qualitativo nas comunicações, os novos meios e linguagens, a partir de 2013 principalmente, se transformaram em poderosas armas na criação de uma falsa realidade, num bem-sucedido método/processo de desconstrução de toda e qualquer política pública que significasse avanços sociais para as classes trabalhadoras. A cooptação do imaginário coletivo por falsidades alegorizadas – as célebres cartilha e mamadeira utilizadas na campanha política, por exemplo - utilizadas de forma a evocarem uma reação negativa, abrangendo o âmbito da relação sagrado-profano, configurou-se em estratégia de comunicação, que utiliza nos discursos chamamentos e expressões simbólicas, de apelo a valores culturais e religiosos tradicionais e fundamentalistas, convocando o outro à uma reação exacerbada na defesa de tais valores.
E uma rede de ódio voltada a tudo que é progressista se organizou. A partir daí aflorou desse imaginário coletivo uma crença na necessidade de reações violentas contra avanços científicos, igualdade social e racial, questões de gênero, políticas públicas desenvolvimentistas, papel social do Estado, etc...
As redes sociais tiveram e têm papel preponderante neste processo. Libertos dos limites postos pelo “olho no olho”, “ face a face”, etc., e protegidos pelo fator da anonimidade, as vozes se colocam com a crueldade e a rudeza do descompromisso com qualquer critério de veracidade, possibilitando que uma mentira repetida muitas vezes tome ares de verdade. A convivência destes fatores entre si estabeleceu uma imagem virtual do mundo: há a realidade concreta, observável e às vezes palpável do mundo material, e a realidade criada pelos discursos e que se apresenta nas redes sociais, cooptando o imaginário de uma grande parcela da população brasileira. O poder dos discursos é tal, que conseguem estabelecer no imaginário coletivo uma realidade extraordinária que só aí existe, assim como não existiam as tais cartilha e mamadeira utilizados na campanha política. Assim, o que vemos acontecer hoje é a construção de um universo paralelo ao real, fundado num discurso carregado de imagens e símbolos capazes de extrair do âmago de muitos o que há de pior. E o pior é que talvez isto seja apenas o começo. Embora tivéssemos algumas diferenças partidárias, seu Dema e eu sempre compartilhamos o sonho de ver o nosso país ser “ honestamente” administrado. E se ele estivesse aqui, certamente estaria tão desanimado quanto eu, mas continuaríamos nosso interminável debate familiar sobre a política e os políticos.

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