Translate

quarta-feira, 20 de abril de 2016

DO TEMPO EM QUE OS VENDEDORES DE LOJAS ERAM CHAMADOS DE CAIXEIROS

Apesar de pequena, a cidade onde nasci tinha um bom comércio em 1959. O principal produto da região era o café e depois da colheita os sitiantes e fazendeiros corriam à cidade para as compras. Era habitual que comprassem para a família e para os agregados ao trabalho do seu espaço rural. Meu pai já era um caixeiro da Casa dos Retalhos desde 1951.

Abrir a loja, ajeitar os tecidos em exposição na calçada – a coluna grega organizada com os tecidos em cascata, as peças dispostas umas sobre as outras; a rosácea ou o labirinto confeccionados em tecidos, dispostos no teto, à guisa de decoração; algumas peças em cores chamativas dispostas em arranjos criativos  na ponta dos  balcões; máquinas de costuras estrategicamente distribuídas no espaço interno; Rádios Pionner sobre uma coluna central, no espaço interno, ou sobre os balcões; chão limpo sobre o qual fora distribuída e depois varrida, uma porção de  serragem úmida; o espaço do Caixa com vidros limpos, espetos de notas organizados e um dinheirinho miúdo para os trocos do dia  compunha a rotina inicial de todas as manhãs.

E o dia começava com os caixeiros enrolando e desenrolando peças e medindo e cortando pano, tanto para a decoração do espaço, quanto para compor e recompor as bancas de retalhos que se espalhavam pelo interior da loja. As prateleiras - que ladeavam as paredes do espaço definido por  quatro grandes portas - suportavam uma imensa quantidade de peças de tecidos simetricamente organizadas, além das caixas de chapéus Ramenzoni e de véus e grinaldas para noivas. 

Espaço pronto, hora de buscar o freguês. Com esse objetivo sempre havia alguém cuidando do movimento na calçada e chamando:
- Vai um vestido aí patroa?
- Olha só esta estampa que beleza! É o que se usa nas cidades grandes!
- Vai uma camisa aí patrão?
- Tricoline pura, algodão do bom, é camisa pro resto da vida!
- Precisa de lençóis freguesa? Nós temos o melhor algodão da cidade! Pras cortinas temos um chitão de boa qualidade, não desbota nem solta tinta.
- Vai casar a filha seu João? O melhor enxoval de noiva é com a gente! Ainda mandamos entregar na porta de sua casa e se precisar até a costureira a gente arruma! Pode comprar sem medo que o melhor desconto é aqui! O senhor sabe, aqui está “a gigante da esquina do barulho”.

E assim, com a fala específica dos caixeiros, apreendida nos anos passados atrás dos balcões, eles ganhavam o sustento. Conheciam os macetes para comunicar de um para outro vendedor o tipo de ação requerido pelo freguês que chegava. À guisa de aviso, alguém dizia:
-Totonho, olha a porta aí, rapaz.
Ao que o Totonho muitas vezes respondia:
- Preocupa não!  É um picão!
-Niltinho, atenção aí na primeira porta!
- Estou atento!  É  um zobe observando!
Atento à porta, Tiãozinho avisa:
- Bene, o que chega na segunda porta é freguês do Nardinho. Nem tente, ele só compra com o homem! Pode ir chamá-lo!
- Isso é verdade, ou você está dando uma de zequinha moura comigo?
Entrando na loja, o freguês confirmava a afirmação do Tiãozinho , pedindo pra falar com o Nardinho!
 Lele, aquele que está atravessando a rua vai comprar. Deixa comigo!
- Como assim, deixa com vc? Eu estou desocupado!
- Mas você ainda não sabe vender, é aprendiz! E eu vi primeiro! Deixa comigo que o caso é especial!
 - Pedrão, olha a segunda porta! Tem burguês chegando!
  E o Pedrão prognosticava: - Hoje ganho o dia só com este!
Algumas vezes uma senhora tímida e relutante apontava na porta buscando por um rosto feminino entre os caixeiros. Como não encontrava, dirigia-se ao primeiro que encontrava desocupado:
- Por favor, será que o senhor tem menina-moça?
- menina-moça, menina-moça, menina-moça.....hummm ...deixa eu ver!
Sem saber do que se tratava e com vergonha de o dizer, o caixeiro perguntava:
- É pra senhora?
Rubra, sem jeito, mas não entendendo que o vendedor não sabia o que era o tal menina-moça,  a senhora exclamava:
- Não, benza-Deus! É pra minha filha!
Resposta que não acrescentava muito como informação.
Desesperado o caixeiro se socorria com a jovem do Caixa:
- Dona Zulmira, eu não consigo me lembrar se  nós temos menina-moça. Temos?
-Temos sim, Totonho. Os soutiens menina-moça estão na gaveta de peças  femininas! Pode deixar que eu atendo a senhora!
E um envergonhado Totonho aproveitava a deixa de Dona Zulmira para transferir-lhe a tarefa de mostrar as peças femininas à senhora.

Lá pelas dez horas da manhã o espaço fervilhava de fregueses escolhendo tecidos, rádios ou máquinas de costura, ou pais comprando o enxoval da filha. E se havia mais fregueses que vendedores as jovens do Caixa   e do escritório também vinham ajudar no balcão. E o espaço fervilhava até aproximadamente às doze horas, quando, como se houvesse um acordo tácito, os fregueses desapareciam com seus pacotes e sacolas de compras e havia um relaxamento no ritmo frenético dos caixeiros, até, aproximadamente às quatorze horas, quando começava o segundo turno!

Os gestos e palavras utilizados faziam parte de uma linguagem cifrada, comum entre os “caixeiros” da época, inocentes palavras, códigos do balcão. Não havia maldade nem pretensão de outra  natureza, que não fosse a de manifestar o conhecimento da malícia considerada necessária à profissão. Um jeito de falar só reconhecido pelos “iguais”. Quando ouviam os avisos, os rostos escondidos atrás das peças de pano riam intimamente, naquela espécie de vingança de quem estava sempre exposto às veleidades do freguês. E assim foi até final de 1964, quando os caixeiros foram assumindo lentamente a denominação de  balconistas e as informações cifradas  trocadas entre um vendedor e outro, à respeito de um “ freguês”, foram desaparecendo. 





Nenhum comentário: