Abrir
a loja, ajeitar os tecidos em exposição na calçada – a coluna grega organizada
com os tecidos em cascata, as peças dispostas umas sobre as outras; a rosácea
ou o labirinto confeccionados em tecidos, dispostos no teto, à guisa de
decoração; algumas peças em cores chamativas dispostas em arranjos
criativos na ponta dos balcões; máquinas de costuras
estrategicamente distribuídas no espaço interno; Rádios Pionner sobre uma
coluna central, no espaço interno, ou sobre os balcões; chão limpo sobre o qual
fora distribuída e depois varrida, uma porção de serragem úmida; o espaço do Caixa com vidros limpos,
espetos de notas organizados e um dinheirinho miúdo para os trocos do dia – compunha a rotina inicial de todas as manhãs.
E
o dia começava com os caixeiros enrolando e desenrolando peças e medindo e
cortando pano, tanto para a decoração do espaço, quanto para compor e recompor
as bancas de retalhos que se espalhavam pelo interior da loja. As prateleiras -
que ladeavam as paredes do espaço definido por quatro grandes portas - suportavam uma imensa quantidade
de peças de tecidos simetricamente organizadas, além das caixas de chapéus
Ramenzoni e de véus e grinaldas para noivas.
Espaço
pronto, hora de buscar o freguês. Com esse objetivo sempre havia alguém
cuidando do movimento na calçada e chamando:
-
Vai um vestido aí patroa?
-
Olha só esta estampa que beleza! É o que se usa nas cidades grandes!
-
Vai uma camisa aí patrão?
-
Tricoline pura, algodão do bom, é camisa pro resto da vida!
-
Precisa de lençóis freguesa? Nós temos o melhor algodão da cidade! Pras
cortinas temos um chitão de boa qualidade, não desbota nem solta tinta.
-
Vai casar a filha seu João? O melhor enxoval de noiva é com a gente! Ainda
mandamos entregar na porta de sua casa e se precisar até a costureira a gente
arruma! Pode comprar sem medo que o melhor desconto é aqui! O senhor sabe, aqui
está “a gigante da esquina do barulho”.
E
assim, com a fala específica dos caixeiros, apreendida nos anos passados atrás
dos balcões, eles ganhavam o sustento. Conheciam os macetes para comunicar de
um para outro vendedor o tipo de ação requerido pelo freguês que chegava. À
guisa de aviso, alguém dizia:
-Totonho,
olha a porta aí, rapaz.
Ao
que o Totonho muitas vezes respondia:
-
Preocupa não! É um picão!
-Niltinho,
atenção aí na primeira porta!
-
Estou atento! É um zobe observando!
Atento
à porta, Tiãozinho avisa:
-
Bene, o que chega na segunda porta é freguês do Nardinho. Nem tente, ele só
compra com o homem! Pode ir chamá-lo!
-
Isso é verdade, ou você está dando uma de zequinha moura comigo?
Entrando
na loja, o freguês confirmava a afirmação do Tiãozinho , pedindo pra falar com
o Nardinho!
Lele, aquele que está atravessando a rua vai
comprar. Deixa comigo!
-
Como assim, deixa com vc? Eu estou desocupado!
-
Mas você ainda não sabe vender, é aprendiz! E eu vi primeiro! Deixa comigo que
o caso é especial!
- Pedrão, olha a segunda porta! Tem burguês
chegando!
E o
Pedrão prognosticava: - Hoje ganho o dia só com este!
Algumas
vezes uma senhora tímida e relutante apontava na porta buscando por um rosto
feminino entre os caixeiros. Como não encontrava, dirigia-se ao primeiro que
encontrava desocupado:
-
Por favor, será que o senhor tem menina-moça?
-
menina-moça, menina-moça, menina-moça.....hummm ...deixa eu ver!
Sem
saber do que se tratava e com vergonha de o dizer, o caixeiro perguntava:
-
É pra senhora?
Rubra,
sem jeito, mas não entendendo que o vendedor não sabia o que era o tal
menina-moça, a senhora exclamava:
-
Não, benza-Deus! É pra minha filha!
Resposta
que não acrescentava muito como informação.
Desesperado
o caixeiro se socorria com a jovem do Caixa:
-
Dona Zulmira, eu não consigo me lembrar se nós temos menina-moça. Temos?
-Temos
sim, Totonho. Os soutiens menina-moça estão na gaveta de peças femininas! Pode deixar que eu atendo a
senhora!
E
um envergonhado Totonho aproveitava a deixa de Dona Zulmira para transferir-lhe
a tarefa de mostrar as peças femininas à senhora.
Lá
pelas dez horas da manhã o espaço fervilhava de fregueses escolhendo tecidos,
rádios ou máquinas de costura, ou pais comprando o enxoval da filha. E se havia
mais fregueses que vendedores as jovens do Caixa e do escritório
também vinham ajudar no balcão. E o espaço fervilhava até aproximadamente às
doze horas, quando, como se houvesse um acordo tácito, os fregueses
desapareciam com seus pacotes e sacolas de compras e havia um relaxamento no
ritmo frenético dos caixeiros, até, aproximadamente às quatorze horas, quando
começava o segundo turno!
Os
gestos e palavras utilizados faziam parte de uma linguagem cifrada, comum entre
os “caixeiros” da época, inocentes palavras, códigos do balcão. Não havia
maldade nem pretensão de outra natureza,
que não fosse a de manifestar o conhecimento da malícia considerada necessária
à profissão. Um jeito de falar só reconhecido pelos “iguais”. Quando ouviam os
avisos, os rostos escondidos atrás das peças de pano riam intimamente, naquela
espécie de vingança de quem estava sempre exposto às veleidades do freguês. E
assim foi até final de 1964, quando os caixeiros foram assumindo lentamente a
denominação de balconistas e as
informações cifradas trocadas entre um
vendedor e outro, à respeito de um “ freguês”, foram desaparecendo.
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