(Este
texto, com algumas reformulações, já foi publicado na página Veja Andirá com o
nome de Contos de Andirá)
1 UM HOMEM DE MUITOS CAMINHOS
Ele
chegou em Andirá com a família em Fevereiro de 1962. Vinha de Apucarana
com a mulher e as quatro filhas. Seguia a rota da esperança em busca de
nova vida, talvez novo meio de vida. Era muito magro e de aparência frágil, mas
quem o conhecia sabia que o físico não servia como medida para a capacidade
infinita de trabalho. Nunca tinha hora para o descanso. Manhãs, tardes e noites
fundiam-se quando se tratava de ganhar o sustento da casa. Apesar do
esforço e da boa vontade já fora enganado por promessas vãs de patrões ladinos.
Viera para trabalhar com um novo patrão, parente do anterior, mas de boas
referências. A moradia fora cedida pelo patrão e distava apenas duas quadras da
Catedral, rua acima, do lado direito, na esquina, próxima a Delegacia, na área
central da cidade. Casinha boa, de alvenaria, três quartos, sala grande,
cozinha e nos fundos do quintal um cômodo minúsculo, onde guardara os livros
todos coletados ao longo da vida. A residência era parte de um
estabelecimento comercial, ora desativado, e por isso duas portas grandes, de
aço, sempre fechadas, davam para a rua.
A
família tinha sensação de que o ano voara tão envolta estivera em estabelecer
novos laços de amizade na terra estranha. Como 1962 fora um bom ano para
o comércio, a “Loja” vendera bem, ele ganhara um bom dinheiro e resolveu ficar
naquela cidade da qual todos em casa já gostavam muito. Afinal o resto da
família – pais, primos e tios e sogros – estavam todos ali perto, vivendo em
fazendas de café nos arredores de Santo Antonio da Platina, Bandeirantes e
Jacarezinho. Também levou em consideração a adaptação das filhas, que não
tiveram dificuldades em fazer amigos.
A vida
era corrida, levantava às seis horas da manhã e as sete já estava no trabalho,
mal tinha tempo pra ver as filhas crescendo. Abria a loja, ajeitava os
tecidos em exposição na calçada, e junto com os demais trabalhadores começava a
faina do dia, medindo e cortando. Cuidava do movimento, na calçada, chamando:
- Vai
um vestido aí freguesa? Olha só esta estampa que beleza! É o que se usa nas
cidades grandes!
- Vai
uma camisa aí patrão? Tricoline pura, algodão do bom, é camisa pro resto da
vida!
-
Precisa de lençóis patroa? Nós temos o melhor algodão da cidade! Pras cortinas
temos um chitão de boa qualidade, não desbota nem solta tinta.
- Vai
casar a filha patrão? O melhor enxoval de noiva é com a gente! Ainda mandamos
entregar na porta de sua casa e se precisar até a costureira a gente arruma!
Pode comprar sem medo que o melhor desconto é aqui!
E
assim, com a fala específica dos vendedores de “panos”, apreendida nos longos
anos passados atrás dos balcões, ele ganhava o sustento da família. Conhecia
como ninguém os macetes para comunicar de um para outro vendedor o tipo de ação
requerido pelo freguês que chegava. À guiza de aviso, dizia:
- Lá
vem um Zequinha Moura!
-
Zobeie que é burguês!
- Deixa
comigo que o caso é especial!
- Não
perca tempo que é picão!
- É
piculina, nem adianta ir desmanchando peças!
Tratava-se
de uma linguagem cifrada, comum entre os “caixeiros” da época, inocentes
palavras, códigos do balcão.
E assim
foi até final de 1964. Os anos de 1963 e 1964 foram ruins para o comércio de
tecidos. A queda das vendas refletia os resultados da agricultura e da situação
política vivida pelo país e ser comerciante se transformou num péssimo negócio.
Era o princípio dos anos politicamente conturbados e mesmo nas pequenas
cidades do interior do país sentia-se pairar uma aura de medo e dúvida pelos
rumos da nação e pelo destino de cada um.
2
TEMPOS DE INCERTEZAS
Nestas
alturas a família tinha mais uma filha e se mudara para outra casa, a cem
metros do Grupo Escolar Ana Néri. As meninas pequenas estudavam no “parquinho”
em frente a casa e as duas mais velhas, que antes estudavam no Ana Néri,
agora frequentavam a Escola de Aplicação. Os dias quentes transcorriam lentos e
pesados, como se o relógio do tempo se arrastasse cansado no verão abafado.
Certo
dia ele chegou em casa muito assustado, pois soubera que o dono de um bar,
situado a duzentos metros, falara mal do governo e alguns dias depois fora
visitado por uns homens estranhos, vestidos de negro. O comentário da semana
foi o desaparecimento deste personagem. O bar nunca mais abriu as portas,
e a família foi embora da cidade sem se despedir de ninguém, silenciosamente.
De
espírito ardente e inquieto ele sempre exercera o seu direito à crítica, talvez
por isso tenha ficado ainda mais assustado. Permaneceu calado por alguns dias,
quieto, taciturno e reflexivo e qualquer rumor estranho era motivo de
apreensão.
Estava
preocupado principalmente porque brigara com uma das professoras das filhas. Na
sua concepção, fora um caso de ofensa à honra da família, coisa de atitude
burguesa mesmo. Ele detestava atitudes desta espécie! Acontecera o
seguinte: A Escola de Aplicação passara a oferecer o leite americano (Leite
para o Progresso, do Programa Aliança para o Progresso, que vinha em pó e em
grandes caixas) no horário da merenda, e uma de suas filhas se recusava a
tomá-lo, razão pela qual foi severamente repreendida pela professora, que ainda
completou a repreensão com a seguinte sentença:
- Menina
boba! Filha de pobre, talvez passe fome em casa e na escola fica com esta
frescura! Pelo que sei o pai mal sustenta as próprias calças.
A
criança chorou muito quando ouviu isso, pois sabia ser mentira, e as
professoras chamaram a irmã mais velha para atendê-la. Não teve jeito, ambas
foram dispensadas para retornarem a casa ante o desconsolo da menor.
Naquela noite ele foi informado do se passara. Mal pode
esperar pelo dia seguinte para ir à escola e avisar as professoras que processaria
quem quer que obrigasse qualquer de suas filhas a beber do tal leite. Na
seqüência, aproveitou para dar a conhecer o que pensava da atitude da
professora e da política assistencialista do governo militar à custa do governo
norte-americano. Extraiu as reservas de ira do fundo de sua alma geneticamente
anarquista para desancar os burgueses do sistema estadual de ensino.
Por
esta razão quando desapareceu o dono do bar, ficou apreensivo. Pensava na
mulher e nas filhas e em como elas fariam para sobreviver caso ele lhes
faltasse. Depois disso ainda ficou em Andirá até Dezembro de 1964, quando
foi convidado a inaugurar uma loja em Borrazópolis. Ainda era uma loja de mesma
denominação, mas de outro ramo da mesma família, parentes do patrão do seu
atual lugar de residência.
E para
lá se foi mais uma vez! Seguia a rota da esperança de dias melhores.
Todos da família sentiram mudar-se, mas a filha mais velha sentiu ainda
mais. Nas famílias numerosas todos compartilham das dificuldades reais
vivenciadas pelas classes trabalhadoras e a infância é um período muito breve,
as fantasias vão embora muito cedo, substituídas pelo desnudar da realidade.
Sem que os pais percebessem sua filha mais velha já era quase uma mocinha, pois
estava com doze anos e há muito tempo participava das preocupações e discussões
dos pais quanto ao futuro da família.
Desde
os sete anos, quando a família deixara Santo Antonio da Platina, temia fazer
amigos, pois as mudanças constantes provocavam sofrimentos. Embora entendesse
os motivos do pai, odiava sofrer, odiava sentir falta daqueles de quem
gostava. Adaptar-se a novos ambientes e fazer novos amigos a cada dois ou três
anos era difícil pra uma adolescente. Desta vez seria ainda mais difícil,
porque tinha um segredo guardado a sete chaves. Não conseguia tirar da cabeça
um menino loirinho, coroinha do Padre Paulo, pároco da Igreja de São Sebastião.
Até a
notícia da mudança estava muito feliz, pois em 1964 tirara a melhor nota num
exame de âmbito estadual do Estado do Paraná, num concurso para estudantes da
quarta série, e ganhara uma Bolsa Estudos para o Ginásio e o Colegial.
Assim, tinha se matriculado para cursar o primeiro ano do Ginásio
Clássico no início de 1965, pois aprender latim a deixaria mais próxima do
menino loirinho. Por isso, quando o pai comunicou que iriam embora de
Andirá, chorou muito. Seguiu inconsolável por dias e dias. Pensava no curso
Clássico que não faria e na Bolsa de Estudos que perderia, pois um dos
requisitos para mantê-la era estudar até o último ano do Colegial na mesma
cidade. Mas o que pesava mesmo era pensar no coroinha de olhos claros.
Sempre tivera um “que” com meninos de olhos claros! Certamente jamais
voltaria a vê-lo. Com tantas mudanças, sabe-se lá onde o pai iria parar com sua
busca de justiça trabalhista e dias melhores?
Na data
marcada para a viagem, junto com os brinquedos, as roupas do cotidiano e o
uniforme da Cruzada, embalou seus sonhos e os colocou no fundo do baú de
madeira da mãe. Quando desembalou as roupas e os brinquedos, que já trocara
pelos livros, deixou as lembranças no baú, onde sabia que estava lacrando para
sempre a imagem do menino que sabia latim, por isso guardou tudo que lhe
permitisse lembrá-lo.
Mesmo
assim, todo dia rezava para ter um motivo para retornar a Andirá e
revê-lo. Lembrava-se da agonia que sentia quando depois da missa alguma menina
ia conversar com ele, suas pernas tremiam e tinha tonturas e mal-estares
repentinos e abaixando a cabeça até só ver o chão, dirigia-se rapidamente para
casa. Gostava de curtir a tristeza no silêncio do quarto de menina. Nada
comentava com a mãe, pois temia que ela contasse ao pai e até já imaginava os
discursos inflamados que ele faria caso descobrisse esse segredo.
Um dia
uma menina bonita estava esperando pelo menino loirinho à saída da missa.
Bem vestida, tinha cabelos castanhos no corte da moda, e apesar da pouca
idade que aparentava ter, já estava levemente maquiada e usava lindos sapatos
brancos com um discreto saltinho. Era a primeira vez que ela via esta menina
nas redondezas. Como transcorria o mês de Maio, todas as tardes as crianças
entravam na Igreja em procissão, levando flores à Virgem Maria e, nos dias
seguintes, a novata sempre se fazia presente, levando lindos ramalhetes de
rosas vermelhas. Desde o primeiro dia em que a linda menina aparecera, o menino
que sabia latim a acompanhava após a missa.
Convenceu-se
que eram namoradinhos, mas não sentia raiva, apenas uma profunda tristeza
turvava sua visão no caminho de casa. Sabia o quanto ele estava distante,
parecia mesmo pertencer a um mundo onde ela jamais teria acesso: o mundo das
tardes dos verões ensolarados na piscina do club, dos domingos na matiné do
Cine São Carlos, das elegantes reuniões familiares nos jardins floridos e bem
cuidados, nos finais de semana. Afinal, na inocência da infância dela,
ele significava o horizonte imaginado, povoado por coisas lindas que ela não
possuía.
Pela
primeira vez se sentia diferente, alheia, e se sentiu pobre, os discursos do
pai ganharam substância e força, agora entendia essa coisa de classes sociais.
Percebia também que a questão maior não estava naquilo que se possuía, mas nos
ambientes que se frequentava. Nunca antes isso acontecera, e essa constatação
mudou sua vida, carregando-a dali para frente de uma profunda timidez.
Mas,
agora, já morando em outra cidade, pensava que se retornasse um dia, talvez
deixasse de observá-lo de longe e criasse coragem para puxar conversa. Talvez
conseguisse vencer a timidez e a sensação de inadequação. Afinal,
ele sempre lhe parecera tão educado! Talvez até se tornassem amigos. Nada havia
de mal em uma jovem ter amigos do sexo masculino. Não era amiga do Wagner, dos
irmãos Roberto e Joana, do Julião (que gostava de comer caramujos)? Havia
também o Paulo e os colegas da escola com quem fora ao cinema para ver o René
Dantas cantar. Afinal, eram todos da mesma idade e filhos de
trabalhadores, até mesmo o menino loirinho que sabia latim. A diferença estava
no fato de que o pai não lhe permitia freqüentar bailinhos e os carnavais no
club, não lhe permitia ir à piscina, pois julgava estas coisas burguesas e
inadequadas às jovens de sua idade. Bem, talvez o menino loirinho fosse
um pouco mais velho, já que cursava o Clássico, aliás, muito do seu charme
vinha daí. Ele ficava tão lindo respondendo à missa em latim!
3
OUTROS TEMPOS, OUTRA REALIDADE
Saindo
daí foram viver na pequena e simples cidade de Borrazópolis. Ficaram
apenas alguns meses nesta cidade e retornaram para Apucarana, onde já haviam
vivido anteriormente, mas por pouco tempo. Finalmente, em Dezembro de 1965
seguiram para outra cidade, de uma região muito distante e completamente
diferente do Norte Velho do Paraná. Aí o pai encerrou suas buscas por dias
melhores. A nova cidade de residência ainda era só poeira, matas e grandes
campos cobertos de pinheiros e gabirobas. Para o pai foi amor à primeira vista,
para a mãe e as filhas era um fim de mundo vermelho de pó ou de lama. Aí
a família se completou: sete filhas e um único filho, o caçula. E o pai, viveu
aí, feliz e realizado, junto à família, até 1986, quando faleceu, aos 56 anos.
Nesta
nova e última cidade onde o pai viveu, ele foi trabalhar na mesma loja e com o
mesmo patrão do qual foi o primeiro funcionário, no início da década de 1950.
Depois de alguns anos, acabaria se tornando sócio da loja desta cidade. Aí as
sete filhas e o único filho cresceram.
Em 1968
a menina que ainda sentia saudades da pequena e bela cidade de Andirá, agora
era uma moça com 16 anos, ia sempre com o pai para Apucarana e, numa destas
viagens, teve que ficar aguardando por ele, na frente do prédio da Coletoria
Federal. Era uma moça bonita, alta, magra, com longos cabelos castanhos de
reflexos avermelhados e todos que passavam voltavam a cabeça para olhá-la.
Apesar de jamais ter abandonado as convicções anarquistas o pai gostava de ver
as filhas bem vestidas e bonitas. Tinha orgulho delas e quando saía em viagem
de negócios procurava sempre ter uma consigo, pois não gostava de viajar
sozinho. Por diversas vezes fora ela, a mais velha das sete filhas, que o
acompanhara.
Enquanto
o pai fora resolver alguns negócios, ela ficara ali na Coletoria aguardando por
documentos que ele precisava. Qual não foi sua surpresa quando parou um carro
com a placa de Andirá dele saiu um jovem que ela reconheceu na hora. Ele
dirigiu-se até ela e perguntou:
- Moça
você sabe nos dizer onde fica a saída para Londrina?
Com o
coração disparado e as pernas trêmulas ela respondeu com outra pergunta:
- Seu
nome não é...
Ele
mostrou-se espantado, pois não a conhecia e quis saber como ela sabia quem era
ele. Ela só sorriu, mas como era tímida não teve coragem para contar! Em
resposta à pergunta disse que também não morava naquela cidade e não sabia onde
ficava a tal saída. Ele voltou ao carro, virou a cabeça em direção a ela,
sorrindo, e disse:
- Moça,
eu devo estar louco para me esquecer de uma jovem bonita como você!
Afinal, de onde é que você me conhece?
Ela
respondeu:
- De
Andirá, mas essa é uma longa história!
Ele
continuou sorrindo e se foi, não sem antes voltar a cabeça para olhá-la
diversas vezes!
Nisso,
o pai chegou para buscá-la!
(dibs.)
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