Barbara Salvadori Heritage (University of Missouri)
Dirce Bortotti Salvadori (UNESPAR)
RESUMO: O Rei da Vela de
Oswald de Andrade é um marco significativo de dois momentos da história
Brasileira: o Modernismo e o Regime Militar. Escrita após a Semana da Arte
Moderna, em 1933 (e publicada em 1937), ela representa a culminação de
sentimentos de insatisfação e questões mal resolvidas relacionadas à República
Velha, a busca por uma identidade nacional, e o desenvolvimento do Capitalismo
no Brasil. No entanto, a peça não seria produzida até 1967, pelo diretor Zé
Celso e seu grupo, o Oficina, quando as Forças Armadas já haviam derrubado o
governo do presidente recém-eleito, João Goulart, e criado uma nova e
restritiva constituição, que suprimia a liberdade de expressão e imprensa no
Brasil. Essa produção se tornou, então, um símbolo de resistência cultural
contra a ditadura militar. O ensaio proposto examina O Rei da Vela e seu significado sociocultural relacionado aos dois
momentos históricos já mencionados. Além disso, investiga num terceiro momento,
49 anos após sua icônica produção, a representatividade da obra em relação ao
conturbado período atual e suas semelhanças e diferenças com os contextos
históricos em que foi escrita e produzida. Ou seja, examina a evolução e
relevância da peça nesses três momentos da história Brasileira.
Palavras-chave: teatro, crítica social, identidade
nacional.
O REI DA VELA: CULTURAL CANNIBALISM IN THREE MOMENTS OF BRAZILIAN
HISTORY
ABSTRACT: Oswald de Andrade’s play O Rei da Vela (The Candle King) is a significant marker regarding
two moments within Brazilian history: Modernism and the Military Regime.
Written after the Modern Art Week, in 1933 (and published in 1937), it
represents the culmination of feelings of dissatisfaction and unsolved issues
related to the Old Republic (República
Velha, also known as the “First Brazilian Republic”), the search for a
national identity, and the development of Capitalism in Brazil. The play was
not produced until 1967, by director Zé Celso and his troupe, Oficina – and by then the Armed Forces
had seized the government of new democratically elect president, João Goulart,
(with support from the U.S. government) and created a new, restrictive
constitution, suppressing Brazilian people’s freedom of speech, press, and
expression. The production became, then, a symbol of cultural resistance
against the military dictatorship. The following essay examines O Rei da Vela and its socio-cultural
meaning in relation to these historical moments. In addition, it considers, 49
years after its iconic production, the play’s representativeness regarding the
current period and its potential similarities and/or differences concerning the
historical contexts in which it was written and produced. That is, it examines
its evolution and relevance within these three moments of Brazilian history.
Keywords: Brazilian theatre, social criticism, national identity.
Introdução
“Those who cannot remember the past
are condemned to repeat it.” (George
Santayana)
A ideia manifestada na epígrafe
decorre da constatação que nos levou a essa pesquisa. Não fora a leitura
anterior de O Rei da Vela, de Oswald
de Andrade, e o conhecimento do contexto no qual foi escrita, não teríamos nos dado
conta do quanto o processo histórico pode nos surpreender por repetições
cíclicas de situações e condições que, apesar de distanciadas no tempo,
aproximam-se por semelhanças de contexto.
Foi assim que a realidade social,
econômica e política do país, a partir de 2013, culminando com o impeachment de
uma presidente da República eleita, em 2016, nos trouxe à memória o texto e
contexto da produção de O Rei da Vela,
bem como seu conteúdo, prenhe de representação do Brasil de ontem e de hoje.
Criada (1933) e publicada (1937) sob a
influência de um contexto nacional sócio-político e econômico de movimento e
transformações, O Rei da Vela só seria encenada pela primeira vez
em 1967, três anos após a implantação da Ditadura Civil-Militar, pelo Teatro Oficina,
sob a direção de José Celso Martinez Corrêa. O texto manifesta um Oswald de
tendências esquerdistas e aponta as contradições sociais da época e a
necessidade de uma revolução social.
O que realmente nos chamou a
atenção é o fato de que O Rei da Vela
foi produzido em um contexto sócio-político e econômico de contornos e aspectos
muito semelhantes ao vivido atualmente, em 2016, assim como a sua primeira
encenação, pelo Teatro Oficina, também se deu em um contexto semelhante ao
atual e ao de sua escritura. José Celso Martinez foi o primeiro encenar O Rei da Vela, que foi escrita durante a
primeira fase da ditadura de Getúlio Vargas. Ele o fez, em 1967, em plena ditadura
Militar, trinta e quatro anos após a sua escritura. Quarenta e nove anos depois
dessa primeira encenação e oitenta e três anos após a sua escritura, a indagação
que nos instiga sobre como seria sua interpretação hodiernamente, se dá exatamente
pela percepção de que O Rei da Vela
continua refletindo, como um espelho, a imagem da sociedade brasileira atual,
com todas as suas complexidades, assim como foi na sua escritura.
Oswald foi um homem de vida intensa (1890 –
1954). Filho único de família abastada estudou e “pôde ainda jovem viajar para a Europa (1912), onde entrou em contato
com a boêmia estudantil de Paris e conheceu o futurismo ítalo-francês. Voltando
a São Paulo fez jornalismo literário” (BOSI, 1995, p. 355). Teve sete esposas; Kamiá, Carmem Lídia,
Tarsila do Amaral, Pagu, Pilar Ferrer, Julieta Barbosa Guerini e Maria Antonieta d”Alkmin. Relacionou-se com um grande núcleo de
artistas de sua época, de quem colheu influências e influenciou.
[...] Passa a ser o grande animador do grupo
modernista, [...] e articula com os demais a Semana. Paralelamente trabalha os romances da ”Trilogia do Exílio”. O período de
23-30 é marcado por sua melhor produção propriamente modernista, no romance, na
poesia e na divulgação de programas estéticos nos Manifestos Pau-Brasil, de 24, e Antropofágico, de 28. É também pontuado por viagens
à Europa que lhe dão oportunidade para conhecer melhor as vanguardas
surrealistas da França. [...] (BOSI, 1995, p. 355).
Em 1922, Oswald fora
um dos promotores da Semana da Arte Moderna e era o maior prosélito da ideia
que consubstanciava a proposta modernista. A Semana da Arte Moderna, influenciada pelos movimentos
que ocorriam em Europa, propunha que a cultura nacional sorvesse a arte
estrangeira, mas que dela retirasse apenas elementos apropriados ao
enriquecimento da arte nacional. Era uma proposta
que visava constituir uma arte nacional do Brasil e para o Brasil. Talvez seus
autores não se dessem conta de que já havia uma arte nacional representativa da
brasilidade. Mas era a arte do povo, a arte produzida pela grande massa popular
que preenchia todos os recantos do país, alijada dos bens de consumo da
sociedade urbana e burguesa.
Num país de maioria analfabeta – e assim era o Brasil das
décadas de 1920/ 1930 - a literatura e as artes em geral se fragmentavam em
duas grandes linhas: a arte popular e a arte erudita. Da arte popular faziam
parte o
folclore, as festas religiosas, o teatro de revista e o artesanato local e
regional, a música sertaneja, o cordel, a santaria, o teatro do circo, o circo,
etc. Da
arte erudita faziam parte a literatura clássica e moderna, os saraus literários, a pintura, a escultura, a arquitetura, a engenharia, a música clássica, a
ópera, etc. Diferentes conteúdos de diferentes universos de vivência. Partindo
destas constatações e do fato de que os autores da proposta modernista brasileira eram
participantes do grupo da cultura erudita, havemos que pensar em que medida o
Modernismo, e mesmo A Semana da Arte
Moderna, atingiu realmente o país na totalidade de sua população.
Apontamos
essa questão para nos lembrarmos de que, num país com as dimensões
territoriais do Brasil, as grandes cidades e capitais compõem apenas a
representação de um pequeno segmento da população, pois no período citado,
principalmente, o campo e as cidades e vilas interioranas concentravam um
número maior de população que as áreas urbanas. Para que as ideias postas em
circulação nos grandes centros chegassem a afetar a consciência e a mentalidade
dessas populações um longo tempo se passava, principalmente dadas às precárias
condições dos meios de comunicação e difusão do conhecimento da época. Mas não importa, e
talvez essa não fosse uma preocupação dos modernistas. No entanto, as
referências a este fato são reflexo de nossas indagações e perplexidade diante
da repetição de situações semelhantes em diferentes contextos.
O ano de 1929 foi um
ano difícil para a economia mundial
e que culminou com o “crack” da Bolsa. No ano seguinte estouraria no Brasil a
Revolução de 1930, que culminou com a ditadura de Getúlio Vargas. Muitas
famílias abastadas foram afetadas por esses processos, e, segundo Bosi, Oswald de Andrade
também teve sua situação financeira afetada.
[...] Dividido entre uma formação anárquico-boêmia e o
espírito de crítica ao capitalismo, que então se conscientizava no país, Oswald
pende para a Esquerda, adere ao Partido Comunista: compõem o romance de auto-sarcasmo (Serafim Ponte Grande 28-33), teatro participante (O Rei da vela, 37) e lança o Jornal O Homem do Povo. Desdobramento dessa posição foi sua
tentativa de criar o romance de painel social: os dois volumes de Marco Zero (43-45). Afasta-se da militância
política em 1945 [...] (BOSI, 1995, p. 355).
Por inferência, temos que o claro e
explícito viés ideológico à esquerda é interpretado
preconceituosamente nos países de origem conservadora, seja qual for o regime
político em andamento. Uma comprovação dessa questão pode ser vista e analisada
na História Moderna dos povos, afinal, os procedimentos de resistência sempre
se fizeram sentir, com os países capitalistas reagindo contra o avanço do
socialismo/comunismo no mundo, como foi o caso da Guerra Fria entre os EUA e a
URSS. Assim também o foi com a resistência internacional à tomada de Cuba
pelos revolucionários de Fidel Castro, à China de Mao-Tsé-Tung etc. Capitalismo e
Socialismo/Comunismo sempre foram considerados abordagens opostas da
realidade, tendo o Capitalismo como a abordagem correta e o Socialismo/Comunismo como
a abordagem incorreta. Realmente, isso é histórico, não é fruto de
dissensões individuais; trata-se de uma postura geral canonizada, tal qual a
luta do bem contra o mal. E de tempos em tempos vemos repetir-se
na História dos homens os levantes opositivos que dividem os povos em duas
grandes categorias: os bons (capitalistas) e os maus
(socialismo/comunistas). Inclusive, podemos afirmar que esse
posicionamento é uma constante no Brasil e estava presente nas décadas de
1920/1930, quando Oswald escreveu o Rei da Vela; esteve presente na
ditadura civil-militar de 1964-1985 e está presente na sociedade brasileira
hodierna e pode ser visto e constatado, principalmente, nas mídias e redes
sociais.
O Rei da Vela, 1933-1937
O
Rei da Vela é um texto que manifesta um posicionamento político em relação a
uma realidade dada. Nele, Oswald elabora a crítica da decadente oligarquia
cafeeira e do processo político-econômico pelo qual passa o país, vivendo uma
fase ditatorial e submetido às regras do Imperialismo estrangeiro que tudo
domina. O olhar depositado sobre a realidade para a elaboração da crítica é um
olhar à esquerda, no espectro político.
Construindo os sentidos do texto a partir
do processo de figurativização, Oswald se utiliza deste recurso para mostrar,
no espelho, possibilitado pela caracterização dos personagens, a miragem da
decadente oligarquia brasileira. Seus personagens manifestam compreensões que
Oswald parece ter extraído de uma leitura das consciências mais do que uma
leitura das ações reais, num processo de contradições da relação ser-parecer.
Os diálogos estabelecidos entre os diversos
personagens chocam pela crueza das revelações, pois Oswald apresenta ao leitor, nos três
momentos distintos da peça, as relações e vivências de uma família da
tradicional oligarquia cafeeira, em seu processo de decadência econômica. Em
sua tentativa de não submergir na pobreza, promovem um casamento arranjado
entre a filha do patriarca da família e um burguês capitalista, Abelardo I,
industrial das velas e agenciador de empréstimos financeiros pelo processo de
usura, devedor dos norte-americanos, a quem presta contas.
O texto apresenta os seguintes personagens
dramáticos: Abelardo I, Abelardo II, Heloísa de Lesbos, Joana conhecida por João dos Divãs, Totó Fruta-do-Conde, Coronel Belarmino, Dona Cesarina, Dona Poloquinha, Perdigoto, O
Americano, O
Cliente, O Intelectual Pinote, A Secretária; Devedores, Devedoras, O Ponto.
A peça divide-se em três Atos: O primeiro ato se
passa num escritório de venda de velas e de usura, em São Paulo, no período da
manhã. No
segundo ato entra em cena uma ilha tropical da Baía da Guanabara, no período da
tarde. No terceiro
ato a cena retorna ao escritório e é noite.
1º ATO
Em São Paulo.
Escritório de usura de Abelardo e Abelardo. Um retrato de Gioconda. Caixas amontoadas.
Um divã futurista. Uma secretária Luiz CV Um castiçal de latão. Um telefone.
Sinal de alarma. Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as
cores. Porta enorme de ferro a direita correndo sobre rodas horizontalmente e
deixando ver o interior de uma grande jaula. O prontuário, peça de gavetas com
os seguintes rótulos: MALANDROS – IMPONTUAIS – PRONTOS – PROTESTADOS. Na outra
divisão: PENHORAS – LIQUIDAÇÕES – SUICÍDIOS – TANGAS.
Pela ampla janela
entra o barulho da manhã e sai o barulho das máquinas de escrever da ante-sala.
(p.63)
Nesse caso, os valores fundamentais
da narrativa estão presentes nos protagonistas da cena, Abelardo I, o Cliente e
Abelardo II. A denominação de escritório de usura Abelardo & Abelardo
permite a interpretação de que Abelardo I e Abelardo II sejam sócios no
negócio. A cena de entrada do primeiro Ato, com Abelardo I atendendo ao Cliente
com o auxílio de Abelardo II, que vai aos arquivos buscar a pasta do tal
cliente, revela um Abelardo I como o chefe e um Abelardo II caracterizado como
um executor de ordens, algo como um guarda-costas, já que também carrega uma
arma à cintura. A caracterização dada pelo esclarecimento “veste botas e um
completo de domador de feras”, somada à presença da jaula escondida pela porta
de ferro de correr, nos transmite a compreensão de como Abelardo & Abelardo
tratavam seus clientes e seus negócios: dois capitalistas sem pudores, em
defesa do capital e dos lucros. A manipulação é dada pela pobreza do Cliente,
que necessita pagar uma dívida, mas se encontra desempregado. A competência
para satisfazer a necessidade do cliente está posta em Abelardo I, que realiza
a performance própria de seu papel de agiota, que é receber o que lhe é devido,
em primeiro lugar. A presença do arquivo com a denominação das pastas também
permite a compreensão de que o que realmente importa é emprestar e receber. A
necessidade de uma pasta para arquivar SUICÍDIOS e o diálogo de Abelardo I com
o cliente em cena confirma esse entendimento. Assim, o Cliente devedor recebe
uma sanção negativa, com Abelardo I a expulsá-lo do escritório, após a menção à
utilização da lei da usura, por parte do Cliente.
Além do já dito, há um diálogo que se
configura como metateatral nesta cena, quando Abelardo I diz a Abelardo II: “Mas
esta cena basta para nos identificar perante o público. Não preciso mais falar
com nenhum de meus clientes. São todos iguais. Sobretudo não me traga mais pais
que não podem comprar sapatos para os filhos” (p. 78). Aqui o personagem
demonstra conhecer que sua função é representar como age um agiota. E aí ele
subverte a narrativa ao dizer: “Sobretudo não me traga mais pais que não podem
comprar sapatos para os filhos” (p.78). Os sentidos construídos aí remetem à
existência de uma consciência do papel representado e de como este papel de
agiota é visto na realidade. Talvez por esta razão Abelardo I se comporte como
Pilatos, lavando as mãos sobre as consequências sociais de sua ação de
emprestar e receber com juros, por isso não quer saber se para pagá-lo um pai
tenha que deixar de comprar sapatos à filha, ou seja, não quer tornar pior o
papel do agiota que interpreta, mostrando todas as implicações de suas ações na
vida cotidiana das pessoas para as quais empresta.
A contextualização do primeiro Ato, presente na narrativa do
personagem Abelardo I, remete à realidade sócio-político-econômica vivida no
período. Vale lembrar que em 1929 a
economia cafeeira sofrera as consequências da quebra da Bolsa de Nova Iorque,
que provocou grandes perdas financeiras aos investidores e que deixou sem preço
toda a produção de café, levando à bancarrota os latifundiários, afetando
indiretamente toda a grande massa de trabalhadores do campo e da cidade, com
altíssimo nível desemprego. Na sequência
de 1930 a 1945, o Brasil vivenciou a experiência de uma ditadura, com o advento
da Segunda e da Terceira República – Estado Novo – que marcou o fim da
República Velha. A que foi denominada de Revolução de 1930 teve início com a
deposição do Presidente Washington Luiz, a dissolução do Congresso Nacional, a
revogação da Constituição e o fim da hegemonia das oligarquias que até então
haviam se alternado na política do café-com-leite. Getúlio Vargas, considerada
a liderança da revolução, assumiu o poder ditatorial. Importante apontar os
quinze anos de governo de Getúlio Vargas, pois neste período o país passou por
grandes transformações.
Na sequência dos
diálogos do primeiro Ato, Rogério A. Dinis, considera que: “O campo discursivo
de O Rei da Vela (2004), com recorte
do espaço discursivo resultante da correlação entre os objetos discursivos
selecionados, será criado a partir das discriminações feitas com a contribuição
das categorias do materialismo histórico” (2009, p.7). Para Diniz, Oswald de Andrade
parodia em sua narrativa o Manifesto dos Comunistas, no primeiro Ato, na seguinte
narrativa: “Abelardo I não confunda, seu Abelardo! Família é uma coisa
distinta. Prole é de proletariado. A família requer a propriedade e vice-versa.
Quem não tem propriedade deve ter prole. Para trabalhar, os filhos são a
fortuna do pobre...” (ANDRADE, 2004, p.43, apud DINIZ, 2009, p. 7). A
demonstração da paródia consta da apresentação do texto do referido manifesto: “A
bazófia burguesa sobre a família [...] sobre a abençoada correlação de pais e
filhos torna-se ainda mais desagradável à medida que todos os laços familiares
entre os proletários são cortados, pela ação da indústria moderna, e seus
filhos transformados em simples artigos de comércio e instrumentos de trabalho”
(MAX & ENGELS, 2005, p.39 apud DINIZ, 2009, p.7)
Utilizamos esta
apresentação de Diniz para confirmar, na análise do texto, a utilização que
Oswald faz de sua posição ideológica na construção da narrativa. Embora a peça
apresente os conflitos entre os capitalistas e os descapitalizados, o grande
vilão da história acaba sendo o sistema, em razão do qual os personagens são
manipulados às ações.
Importante apontar no
1º Ato o seguinte diálogo:
Abelardo I – Diga-me uma
coisa, Seu Abelardo, você é socialista?
Abelardo II – Sou o primeiro
socialista que aparece no Teatro brasileiro.
Abelardo I – E o que é que
você quer?
Abelardo II – Sucedê-lo
nessa mesa.
Abelardo I – Pelo que vejo o
socialismo nos países atrasados começa logo assim... Entrando num acordo com a
propriedade...
Abelardo II – De fato...
Estamos num país semicolonial...
Abelardo I – Onde a gente
pode ter ideias, mas não é de ferro.
Abelardo II – Sim. Sem
quebrar a tradição.
Nesse texto talvez
possamos afirmar que Oswald se insere na peça, demonstrando que sua opção
política é provocada pelo contexto, pela ocasião, mas que ele não quebrou seus
vínculos com sua condição anteriormente vivida, de membro da classe hegemônica.
Toda a primeira parte
do primeiro Ato evidencia as tomadas de posições de Abelardo I em relação à sua
prática de agiotagem, à preocupação com a cobrança de suas “vítimas”, com os
lucros, e a evidência de um próximo casamento por interesse com a filha de um
oligarqua falido. Os diálogos evidenciam que se trata de um casamento por
interesses mútuos: ele quer o brasão, ou seja, a substituição de sua condição
de burguês sem “nome” pela aquisição de um “brasão”, com a figura do brasão
significando aqui nome e poder pelo casamento de interesse: a família descapitalizada
vende a moça e ele, capitalista bem sucedido da nascente indústria nacional, a
compra, apesar do que indica seu nome: Heloísa de Lesbos.
Não podemos deixar de apontar na escolha do
nome dos personagens as referências satíricas de Oswald à célebre História de
Abelardo e Heloísa, famoso casal de amantes da Idade Média, que tiveram seu
amor impedido pela moralidade e convenções da época. Além disso, a denominação “de
Lesbos” configura uma referência à famosa ilha grega, onde a poetisa Safo teceu
poemas de exaltação ao amor por outras mulheres, donde a denominação
lesbianismo à homossexualidade feminina.
O segundo Ato, se passa numa ilha
tropical, na Baía de Guanabara, que Abelardo I comprara para a realização de
seu casamento com Heloísa. Na cena desenvolvida na ilha parasidíaca aparecem os
demais personagens da peça: o Americano, Totó Fruta-de-Conde, D. Poloca, João
dos Divãs, Coronel Belarmino, D. Cesarina, Perdigoto e Heloísa e Abelardo I. Os
diálogos e narrativas desta cena completam o quadro da sociedade retratada. Os diálogos livres e francos sobre a
homossexualidade dos filhos do Coronel Belarmino, destoam da época de sua
produção, já que os preconceitos presentes nessa sociedade certamente não lhes
permitiam aceitar e falar com tanta naturalidade sobre as tendências sexuais
dos membros da família. O mesmo ocorre com os diálogos entre Abelardo I e sua
futura sogra, e entre Abelardo I e uma tia de Heloísa. Confirma nossa percepção
o texto de José Eduardo Vedramini, que aponta, em O Rei da Vela, elementos metateatrais e de metalinguagem como
instrumentais em relação aos “objetivos declaradamente críticos” do autor: “O
Rei da Vela vale-se de personagens alegóricas, com os conflitos de ideias
antecedendo os conflitos emocionais entre as personagens. A sátira virulenta e dessacralização
de valores, constantes em toda a peça, nascem do universo teatral e retornam a
ele, num jogo quase totalmente fechado. (p. 26)”.
A peça chega ao seu termo no mesmo
ambiente de seu início, só que já não é manhã, é noite e Abelardo I discute com
Heloísa as consequências de sua inesperada falência, decorrente de um roubo. O
epílogo tem as características dos dramas, com Abelardo I optando pelo suicídio
para não acabar seus dias na prisão. No final da cena o ladrão se revela, é
Abelardo II, que além de assumir os negócios, como herdeiro de Abelardo I,
assume também o casamento com Heloísa.
Nessa cena, Abelardo I doa a Heloísa à capacidade de prosseguir na sua
história de salvar-se pelo casamento. As contradições da relação ser-parecer
estão todas expostas, e finalmente Abelardo I morre, enquanto Heloísa assume
seu novo Abelardo.
Nos diálogos do terceiro Ato
concretiza-se um debate entre as duas ideologias que subjazem parodiadas na
peça: capitalismo e socialismo/comunismo.
Ao tornar-se o algoz de Abelardo I, Abelardo II atua como quem assume a
função do agiota capitalista e a sua atitude ao chutar o radio quando esse
transmite da Rússia, configura-se como uma negação de suas propaladas
tendências socialistas.
A peça de Oswald representou, como
nenhuma outra narrativa literária do período, a realidade do tempo em que foi
produzida, tecendo duras críticas, a partir da satirização, à sociedade de seu
tempo, o que permite que lhe atribuamos o sentido de renovação mesmo na
perspectiva do Modernismo que então se apregoava. No contexto real do
Modernismo, significou também uma opção pessoal do autor por um lado, uma
perspectiva ideológica, na perspectiva política em geral, entre membros da
Semana da Arte Moderna.
Toda transformação política de um
Estado ou país conta sempre com pelo menos duas faces das interpretações
possíveis. E assim foi na década de 1930 quando, de entre os membros da Semana
da Arte Moderna, saíram os correligionários das duas maiores tendências
políticas que têm dividido o país desde então: de um lado o apoio político à
ditadura, representada pela AIB (Ação Integralista Brasileira), Partido Da Ação
Integralista, que foi criado por Plínio Salgado – um dos participantes da Semana
da Arte Moderna de 1922, anticomunista, antiliberal e o primeiro partido nacional
de massa. Do outro lado, e em contrapartida a AIB, surgiu a ANL (Aliança
Nacional Libertadora) de tendência esquerdista e de oposição ao governo
ditatorial, da qual participou Oswald de Andrade. No Brasil, em reação ao crescimento
da AIB, formaram-se pequenas frentes antifascistas que comportavam
comunistas, socialistas, e antigos participantes do movimento tenentista
(tenentes) insatisfeitos com a aproximação entre o governo de Getúlio
Vargas e as oligarquias afastadas do poder em 1930, e que se reuniam na
ANL.
Getúlio Vargas contemporizou com as
duas forças políticas antagônicas, tendendo a apoiar o Integralismo,
principalmente na sua campanha contra o comunismo representado pela ANL. Porém,
em novembro de 1935, com o apoio de Luiz Carlos Prestes, a ANL tenta a
derrubada do poder com o que ficou denominado de Intentona Comunista. Getúlio
caçou os comunistas e para isso teve o auxílio da AIB. Entretanto, também a AIB
foi colocada na ilegalidade, em 1938, por ocasião do levante Integralista, outra
tentativa de depor o governo Vargas.
No interregno de 1945 a 1964
aconteceram os procedimentos de redemocratização do país, num período que foi
marcado por grandes transformações. Nesta fase governaram o país: Gaspar Dutra,
Getúlio Vargas, agora eleito pelo voto direto do povo brasileiro; João Café
Filho, Juscelino Kubitschek, Jânio da Silva
Quadros e João Goulart.
As tendências
esquerdistas deste último presidente assustaram algumas camadas da população
brasileira e, novamente, em 1964, o país se via sob uma ditadura e cindido em
duas facções ideológicas: de um lado os que apoiavam a ditadura militar,
representado por membros da sociedade civil e pela burguesia, de outro os que
se contrapunham ao regime ditatorial, com a organização e ação de diversos
grupos: PC do B, MR8, Ligas Camponesas, grupos de jovens ligados às
Universidades, à Igreja Católica, padres adeptos do Concílio Vaticano II, etc.
E foi nesse
contexto ditatorial que José Celso Martinez Corrêa resolveu fazer a primeira
montagem de O Rei da Vela, sem, no
entanto, preocupar-se em fazer dela uma peça autoral em relação a Oswald de Andrade
– mesmo utilizando o conceito oswaldiano de antropofagia. José Celso levou à cena uma interpretação sua
de O Rei da Vela.
Usando esse entendimento para
nortear nossa análise de O Rei da Vela
– e já tendo considerado o texto, as intenções de Oswald, e a ideologia
cultural durante o Modernismo – passemos, então, às considerações relacionadas
a montagem icônica da peça, pelo grupo Oficina de José Celso Martinez Corrêa (Zé
Celso), em 1967.
O Brasil da década de 60 se debatia
com muitos dos mesmos problemas e questões vividos durante o período no qual O Rei da Vela foi escrito. O crescente
envolvimento de capital estrangeiro no país provocou uma mudança na mentalidade
em direção a um modelo socialista e anti-imperialista e influenciou o governo
de João Goulart. O golpe militar realizado pela direita brasileira com o apoio
dos Estados Unidos foi uma resposta contra essa mudança de pensamento. É nesse
cenário político de cerceamento e controle militar que a montagem de Zé Celso
acontece.
Não podemos deixar de apontar que
ao golpe militar sucedeu-se novamente uma ditadura, cujas características
repressoras foram aos poucos se acentuando e incidindo sobre todas as formas de
comunicação, atingindo as artes em geral, como a música, o teatro, a
literatura, etc., bem como o controle ideológico, cindindo novamente o país em
pelo menos dois grandes segmentos: os grupos políticos de apoio à ditadura
(direita política) e os grupos de contestação (esquerda política).
De 1964 a 1967, a censura e a repressão
ainda eram possíveis de serem disfarçadas sob outras denominações, mas, a
partir de dezembro de 1968, com a edição do Ato Institucional número cinco (AI
5) isso se tornou impossível, e o país entrou em processo de franca decadência
dos direitos institucionais da pessoa e dos direitos humanos, como a prisão e
perseguição de pessoas cujas tendências ideológicas apontassem à esquerda no
espectro político, bem como o desaparecimento dos prisioneiros.
Para quem era jovem e vivia nas
pequenas e médias cidades do interior do país, a década de 1960 foi um tempo de
coisas novas, elas apareciam no mundo e ia chegando devagar ao Brasil:
rock-and-roll se disseminando, os Beatles, a guerra do Vietnam, a revolução
estudantil na França e nos EUA; no Brasil, de repente a Jovem Guarda, Festivais
de Música da Record, a revolução sexual assustando os pais, os hippies
estabelecendo a moda, os jeitos, definindo as cores das roupas, com os tons e
formas psicodélicos; a Tropicália se estabelecendo, o aumento do consumo e disseminação
das drogas, principalmente do LSD; e a liberação da juventude do controle dos
pais numa ruptura com os “velhos” padrões, os padrões conservadores, e o
surgimento de um mundo novo.
Tudo isso formava um amplo panorama
concepto-áudio-visual que dimensionava a realidade para um jovem do Brasil
interiorano. A partir de 31 de março de 1964, conhecíamos que o país vivera uma
“Revolução” (sic), mas não chegava até nós todos os ecos possíveis e prováveis
dessa “Revolução”; primeiro devido à lentidão e precariedade dos meios de
comunicação, e, segundo, porque a censura não se fez esperar para tomar o
controle do que se podia ou não divulgar.
Foi somente com o AI-5, a
dissolução do Congresso Nacional, a cassação de direitos políticos de membros
da esquerda, a perda de direitos políticos por dez anos de qualquer cidadão sob
suspeita e o acirramento da censura, que os jovens do interior do país souberam
o que significava a mudança do regime político que ocorrera em 1964.
Essa digressão tem como objetivo
demonstrar que um mundo velho e um mundo novo conviviam no interior de um mesmo
contexto. Não era uma convivência pacífica, era uma convivência de confronto,
de controle, de tentativa de destruir o novo nas suas origens, já que ele
significava uma ruptura com a tradição do controle hegemônico do país pelas
elites conservadoras. Mais uma vez direita e esquerda se digladiaram, com a
direita mantendo o poder e o controle. O bem (a ditadura, os estrangeiros que “ajudavam”
o país a sair da crise econômica e política) contra o mal (a subversão dos socialistas/comunistas
e democratas).
Considerando esse contexto, faz
sentido que o conceito de Antropofagia, desenvolvido por Oswald décadas antes,
fosse retomado pela classe artística e teatral em sua luta contra a presença
estrangeira no país. Segundo David George, além de resgatar do esquecimento o
drama do modernista Oswald de Andrade, o Oficina foi responsável por “trazer ao
palco pela primeira vez seu conceito estético-ideológico de Antropofagia” (p.
74). Barbara Heliodora menciona em seu artigo de 1971 que “os projetos teatrais
realizados no espírito do movimento de 1922 apareceram alguns anos mais tarde,
e os únicos textos que seriam considerados pertencentes inteiramente ao
movimento foram os escritos por Oswald de Andrade, em particular O Rei da Vela, o qual clama contra a
subordinação do Brasil à interferência estrangeira (agora incluindo os EUA)”
(p. 51). Yan Michalski, por sua vez, afirma que a produção de O Rei da Vela, pelo Oficina,
“desenvolveu uma estética genuína e projeto cultural, o que iniciaria uma nova
fase no teatro brasileiro e serviria de inspiração” para vários imitadores (MICHALSKI
apud GEORGE, 1992, p. 74).
Apesar de historiadores de teatro e
críticos demonstrarem incerteza sobre as circunstâncias que levaram o Teatro
Oficina a escolher O Rei da Vela como
peça de inauguração de seu novo espaço teatral (um incêndio em 1966 havia
destruído o teatro onde o grupo operava), George afirma que uma única leitura
em grupo em determinada ocasião, foi o suficiente para criar entusiasmo e fazer
dos membros do Oficina adeptos da visão política e teatral de Oswald de
Andrade. A peça escrita mais de trinta anos antes “ressoou no coração de
eventos políticos recentes e em relação a resposta passiva da tomada militar.
Em três décadas, de ditadura a ditadura, apesar de sinais aparentes de
progresso, O Rei da Vela fez parecer
que o Brasil tinha estado congelado no tempo” (GEORGE, tradução livre p. 83).
George acredita que, como Oswald de Andrade antes deles, José Celso e seus
atores estavam convencidos que algumas parcelas da população brasileira “se
beneficiavam da estagnação, pobreza, e obsequiosidade ao poder e influência
estrangeiros” (tradução livre, p. 85).
Diferentes criações estéticas de
variados artistas compunham esse conturbado período no Brasil - constituindo o
movimento que ficou conhecido como Tropicália ou Tropicalismo – incluindo um
filme de Glauber Rocha, Terra em Transe,
que influenciaria os objetivos de Celso e sua montagem. Segundo George,
inspirado pelo filme de Glauber Rocha, Zé Celso, queria nada mais nada menos
que encontrar o caminho de volta à uma “era dourada Tupi”, através da criação
de uma nova linguagem teatral que iria expressar as mais profundas raízes da
cultura brasileira. Além disso, Celso acreditava, baseado nas ideias de Oswald,
que para voltar ao Tupi como um criador teatral, ele deveria devorar ou ser
devorado pelos colonizadores e suas doutrinas, “por modos artísticos impostos
de fora e imitados por brasileiros, por turistas e suas visões exóticas e
tropicalistas do Brasil, e consumidas pelos próprios brasileiros” (tradução
livre, p. 85). Esse novo manifesto antropófago do Oficina “pretendia ser um ato
de ‘descolonização’, uma tomada de consciência através da provocação, ultraje,
do ridículo, e mau gosto” (GEORGE, tradução livre, p. 85).
No entanto, segundo Fernando
Peixoto, que fazia parte do grupo durante esse período, a crítica do Oficina
não se restringia aos militares ou estrangeiros e era, por sua vez, “um
irrestrito descobrimento crítico do Brasil. Uma revisão de valores impiedosa e
implacável (...). E no final nós voltamos tudo isso contra o público, incluindo
a chamada elite intelectual e política. Porque o que nós fizemos foi
desenvolver um foco crítico baseado na zombaria e irreverência. Nada era
poupado, nem os mitos nem os estereótipos (...)” (apud GEORGE, tradução livre,
p. 86). George afirma que a montagem foi um verdadeiro “pot-pourri Tupi”: “A
produção desenvolveu seu processo antropofágico incorporando certas formas
populares que haviam sido marginalizadas pelos padrões estéticos internacionais
de bom gosto, como o circo, carnaval e revista” (tradução livre, p. 86).
Seguindo a descrição de Oswald, o
primeiro ato da montagem se passa no escritório de usura de Abelardo I – este
foi transformado num ambiente circense (incluindo um traje de domador de leões
para Abelardo). Hélio Eichbauer cobriu o palco (que havia sido reconstruído
como palco giratório inspirado por uma montagem de Bertolt Brecht) com uma lona
pintada de amarelo e vermelho para dar um efeito de velas queimadas - e velas
de vários formatos e tamanhos foram espalhadas pelo palco. O palco giratório
(que dava à audiência maior ou menor visibilidade dependendo de seu movimento)
representava a natureza cíclica e efêmera no mundo corrupto e de exploração de
Abelardo (GEORGE, p. 88).
Os atores, em colaboração com
Eichbauer, criaram seus próprios figurinos. Fernando Peixoto, no papel de
Abelardo, misturou seu traje de domador de leões com a bombacha gaúcha (fazendo
referência a Getúlio Vargas e João Goulart). Heloísa, no primeiro ato, usa um
terno de linho branco, gravata e chapéu – um traje de homem de negócios nos
anos 30, que “correspondia simultaneamente a três níveis de significado: a
emancipação da mulher, o lesbianismo de Heloísa e o ‘negócio’ que era seu
casamento com Abelardo”. Sua maquiagem dividia seu rosto em uma metade azul
(indicando o céu tropical), e a outra branca (indicando a brancura
fantasmagórica da decadência da sua classe social) (GEORGE, tradução livre, p.
89). Os Abelardos também tinham a face dividida em duas partes, “representando
a dualidade social” e aspecto fraudulento da personagem. Essa ideia de
dualidade foi inspirada pela peça Arturo
Ui de Brecht. Dona Cesarina, sogra de Abelardo, estava vestida em um traje
tradicional (para uma senhora de estatura social do período) da cintura para
cima e um traje revelador (meia arrastão) da cintura pra baixo (GEORGE, p. 89).
George ainda chama atenção para os
elementos fálicos que, segundo ele, eram “onipresentes’ na montagem e “causaram
grande controvérsia entre as audiências, autoridades e alguns críticos”
(tradução livre, p. 90). Dona Poloca lambia um pirulito no formato da genitália
masculina. Todos os trajes masculinos, assim como as calças de Heloísa no
segundo ato, incluíam uma coquilha usada do lado de fora das calças. Segundo
Armando Sérgio da Silva, um dos elementos o diretor usou para unificar os três
atos foi um tipo de obsessão sexual: sexo no primeiro ato era um instrumento de
poder e dominação empunhado pelo macho brasileiro; no segundo ato deu lugar a
classe e conchavos políticos; no terceiro, funcionou como um contraponto
dramático ao primeiro ato: “Abelardo passou da posição vertical à horizontal,
terminando precisamente na clássica posição, de quatro, Abelardo II, seu
sucessor, permaneceu ereto com a vela na mão, a mesma que ele iria enfiar no
anus de Abelardo I... Um novo rei nascia. O macho exercitou seu poder. O
não-macho foi penetrado, sexualmente, pelo poder” (apud GEORGE, tradução livre,
p.90).
O papel desempenhado pelo
americano, na peça O Rei da Vela, se
manifesta em toda a sua perspectiva de dominação quando Abelardo I, pouco antes
de morrer, avisa a Abelardo II sobre o “direito de pernada”, ou seja, o
estrangeiro não oprimia o país apenas por sua interferência econômica e
política, ia além, imiscuindo-se nas relações pessoais, subvertendo as relações,
submetendo física e moralmente os dominados, como se dava nos regimes feudais
da Idade Média.
George diz: “(...) o paradigma
colonial significou que os brasileiros fossem sempre devorados (explorados
econômica e culturalmente) por estrangeiros. Os brasileiros deveriam agora
devorá-los. Antropofagia, nesse sentido, pode ser traduzida para o que eu
chamarei de pot-pourri Tupi: irrestrito uso de um grande número de fontes, seja
qual for a origem, sem respeito pela integridade das mesmas” (p.77). George
compara O Rei da Vela a Ubu Rei do francês Alfred Jarry. Segundo
ele, em O Rei da Vela, Oswald
“canibaliza” a peça de Jarry e “filtra” seus temas, personagens e símbolos
através de uma “peneira” nacional, os colocando “a serviço de uma realidade
brasileira” (p.78). George também afirma que a peça de Oswald parodia, sem
nenhuma dúvida, as formas teatrais vigentes nos anos 30: “revista, melodrama,
opereta” (p.78). George diz que: “Andrade fatiou sua personagem principal
Abelardo da carne de Ubu e cortou em pedaços comestíveis a ambição desnuda e a
cobiça dele (...), assim como sua covardice e imoralidade. Ambos as personagens
buscam ascensão social por quaisquer meios” (p.78). Ele afirma ainda que a peça de Oswald deixa
clara sua visão sobre o capitalismo americano, que tira vantagem da crise
econômica e “vulnerabilidade histórica” do Brasil, aferrolhando o país com uma
dívida externa onerosa. Em termos “antropofágicos, o Brasil está sendo devorado
por estrangeiros” (p. 79). Nas palavras de Abelardo: “países inferiores tem que
trabalhar para países superiores assim como o pobre tem que trabalhar para o
rico” (ANDRADE, p. 94). George diz:
Num nível
simbólico, a ascensão de um rei da vela, sua queda, e a ascensão de outro,
sugere que a estrutura socioeconômica do Brasil é cíclica e inalterável, e que
seus eventos são moldados por forças externas. Colocando em termos
antropofágicos, enquanto brasileiros devoram-se uns aos outros, eles são
devorados por estrangeiros. Abelardo II,
parodiando a antiga história de amor, afirma durante seu casamento: ‘Heloísa
vai sempre pertencer a Abelardo. É clássico. (p.79)
George também afirma que Oswald
“emprestou” essa visão sobre o nosso “sistema econômico Tupiniquim” do Marxismo
(p.79). Sobre a sexualidade da peça, George afirma que “se a sexualidade na era
dourada Tupi era pura e sem restrições, no contexto de uma estrutura social
injusta e imperialismo sexual as relações são reduzidas a transações comerciais
e repressão de instintos, o oposto da era dourada Tupi” (p. 82). Essa perspectiva
faz com que a totalidade da apresentação de O
Rei da Vela na leitura de José Celso Martinez Corrêa e do grupo Oficina transforme-se
num retrato da História do Brasil.
O
Rei da Vela 2013-2016
Partimos do princípio de que para
entender os interregnos entre autoritarismo ditatorial e democracia, no
Brasil, precisamos conhecer a dinâmica do processo de constituição de nosso
modelo político. Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Hélio Jaguaribe,
Raymundo Faoro, dentre outros, concebem que a herança do modelo político
brasileiro decorre da tradição patrimonialista, mas não da tradição
patrimonialista do modelo Greco ou Romano. No caso do Brasil, essa tradição
seria herdada do modelo de patrimonialismo vivenciado na Península Ibérica,
acrescentado do despotismo oriental, dado pela longa dominação árabe na
península. Mas que relações podemos estabelecer entre esta origem e O
Rei da Vela de Oswald de Andrade?
Para responder a essa questão precisamos
retomar os estudos do sociólogo alemão Max Weber, que analisou o conceito de
legitimidade, estabelecendo os três tipos de autoridades legítimas, que são:
[...] a)A autoridade tradicional,
que tem por base os valores e crenças nas virtudes sagradas do governante, cujo
direito ao poder é conferido pela tradição. Nesse tipo de governo não se leva
em consideração a pessoa do governante, mas o princípio do patrimonialismo,
onde não há separação entre o que é público e o que é privado. b) A
autoridade racional-legal é o tipo de poder exercido por um indivíduo ou
instituição, a partir de uma atribuição legal segundo uma ordem jurídica
racional, com base em leis, que lhe confere o poder. Nesse tipo de poder há
clara separação entre o que é público e o que é privado e vigora o princípio da
impessoalidade, pois os governantes têm seus poderes limitados e os direitos
individuais são garantidos. c) A
autoridade carismática é aquela cujo poder deriva do carisma do líder e se
legitima em razão de suas qualidades pessoais. Esse tipo de autoridade
pode aparecer em qualquer momento da história de uma sociedade. O líder
carismático é o que mais se aproxima ao protótipo do profeta ou do salvador de
uma dada sociedade ou nação. Na história do Brasil de autoridade
tradicional se manifestaram, por muito tempo, os tipos e carismática, com
significativas transformações nesta sistemática somente nos anos finais do
século XX. (WEBER,1995, apud SALVADORI, 2008, p.49)
Apesar de o Brasil ter
experimentado os dois modelos de dominação: o tradicional e o carismático, a
predominância foi do modelo tradicional, cuja dinâmica consta da não separação
entre o público e o privado, ao contrário da dominação racional-legal, onde as
duas instâncias estão bem separadas e onde predominam os interesses dos
representados e não dos representantes.
Sérgio Buarque de Holanda (1963,
p.x apud CHACON,1985, p.19) chama a atenção para o fato de que, sendo o Brasil
um país de economia agrária, “com a predominância do tipo primitivo de família
patriarcal, o desenvolvimento da urbanização” do país, atraiu
“vastas áreas rurais para a esfera da influência das cidades. ” Segundo o
autor, essa seria a instância motivadora do desequilíbrio social vivenciado no
país. Destacamos também que foi ela a agenciadora da construção de relações de
poder do tipo dominador-dominados.
Dessas questões destacamos que a
maior responsabilidade do modelo para o que acontece no país, a intervalos,
continua sendo a predominância, na política, da não separação entre o público e
o privado, com os personagens políticos atuando na gestão política pública em
defesa dos próprios interesses, ou seja, dos interesses privados. Essa
descaracterização da função política transforma o Estado e suas funções num
balcão de negócios, donde decorre que a formação dos partidos políticos também
se dê em razão dos interesses, mais que das ideologias. Vamireh Chacon
nos diz que os partidos políticos brasileiros são incapazes de “canalizar e
mediar as reivindicações sociais, apesar dos esforços setoriais e meritórios,
empreendidos em alguns deles” (CHACON, 1985, p. 22). É aqui que introduzimos as
questões apresentadas por Oswald em O Rei da Vela e o terceiro
período político de nossa análise.
Há, apontando já em 2011 e se
concretizando em 2016/2017, no Brasil, como em 1930- 1945, 1964-1985, um
movimento de dissolução social, de decadência econômica, desemprego,
insatisfações com o sistema, suspeitas de interferência estrangeira, de ruptura
com as instituições (mesmo que sub-repticiamente) pela quebra dos contratos
sociais e pela invasão dos direitos pessoais e humanos pelo sistema para
desestruturá-los.
As tentativas de equilibrar as
relações de poder entre dominador-dominados, dadas pela aplicação das teorias
desenvolvimentistas ao processo econômico, feitas por governos trabalhistas,
entre 2002 e 2014, e entendidas como direcionamento político à esquerda do
espectro, inflaram manifestações de desgosto por parte dos grupos de dominação
nacionais e quiçá estrangeiros, num crescendo constante que ao final de doze
anos transformaram-se em manifestações de ódio explícito – e provocando o
acirramento das relações já mencionadas, produzindo a sensação de que o país se
encontra à deriva, ou seja, sem uma perspectiva definida de futuro.
Nesse contexto, a antropofagia
oswaldiana se manifesta quando o que predomina na gestão política são os
interesses particulares, quando os governantes que quiserem ser bem-sucedidos e
levarem a termo suas propostas de gestão para o país, não podem atuar com
autonomia ou provocar insatisfações nos demais poderes da República, sob pena
de ter suas pautas de governança trancadas. Essa perspectiva gerou, de forma
mais evidente nos últimos doze anos, uma obrigatória política de coalizões, sem
a qual, para qualquer que seja o presidente da República eleito, há riscos de não
se conseguir governar o país. Parece ter sido essa a dinâmica que retirou todo
o apoio necessário à governabilidade da última gestão da Presidente Dilma Rousseff,
que foi deposta em 2016.
A deposição da Presidente Dilma Rousseff
fez emergir um contexto sócio-político-econômico extremamente complicado
para o país, trazendo à superfície uma sociedade contaminada por ódios,
revoltas e preconceitos, exterminando com a famosa cordialidade de sua
população. Nesse contexto, as duas principais vertentes do amplo espectro
político nacional passaram a se digladiar cotidianamente, nas ruas, nas redes
sociais, nas manifestações temáticas, retomando a dualidade defensores do
capitalismo versus defensores das massas despossuídas (capitalismo x
socialismo/comunismo, como se tem divulgado).
Talvez possamos afirmar que,
apesar de não estarmos, como nos dois momentos anteriormente citados,
vivenciando uma ditadura nos moldes das anteriores, não estamos também
vivenciando um pleno processo democrático, já que medidas extremamente
impopulares – conforme podemos avaliar pelas manifestações populares – têm sido
votadas e aprovadas pelos representantes da população. A supressão de direitos
levada a termo mesmo em vista da contrariedade da população – que elegeu seus
representantes para representá-la em suas necessidades e anseios – configura-se
como a ruptura das instâncias democráticas de ação. Nessa perspectiva, os
representantes da população agem de forma semelhante a Abelardo I e seu
substituto, Abelardo II, a quem importa ganhar, independentemente do que se
precise fazer, de como se faça e de quais princípios se necessite dispor.
Talvez Oswald tenha sido
realmente profético ao evidenciar o predomínio das relações de poder e
interesses em nossa sociedade, em O Rei da Vela. O texto de
Oswald continua representativo da nossa realidade atual, tanto da dualidade
capitalismo versus socialismo/marxismo, quanto em relação à dominação
estrangeira sobre o país. O povo brasileiro, apesar de desejar chegar a um
desenvolvimento da qualidade que julga que se viva nos países
primeiro-mundistas, tem, no plano das ideias, um modelo dado de primeiro mundo,
fora do qual não existe a excelência. A situação vigente é dada e representada
pela assimilação indiscriminada de concepções, preconizadas por inúmeros instrumentos
de dominação (as mídias, principalmente), às quais assimilam sem criticidade.
O contexto vivenciado demonstra
que o conservadorismo patriarcal das décadas de 1930 e 1960 prossegue
condicionando as interpretações das ideias das elites econômicas e, em larga
escala, também da classe trabalhadora, principalmente daquela classe
trabalhadora que nos últimos doze anos ascendeu socialmente, podendo desfrutar
de viagens internacionais, lazer de qualidade e melhoria da educação, com
acesso à Universidade.
O Brasil, país cordial, de povo
gentil, multifacetado pelo convívio caloroso de povos diversos, é apenas um
agiota impiedoso que aspira unir-se a uma família brasonada para perder seu
complexo de ninguendade (Darcy Ribeiro), mesmo que tenha que entregar-lhe seu
dinheiro, suas terras, suas riquezas minerais, etc., como na peça de Oswald. O que sobrou foram as ideias integralistas da
AIB, à serviço do espectro à direita, na política e o conjunto das ideias
da esquerda, que já não conseguem se reunir numa nova ANL, mas que se
manifestam em contrariedade do contexto vivenciado.
Como nas décadas dos períodos já
mencionados 1930-1945, 1964-1985, os primeiros movimentos de contestação da
deposição da presidente democraticamente eleita – a resistência – vieram das
classes populares, dos artistas e, no contexto atual, o teatro popular, o
teatro circense, a música, a literatura, dos intelectuais orgânicos, etc.
A grande novidade é a adesão de algumas artes consideradas eruditas aos
propósitos das classes populares. Não soubemos que a peça de Oswald tenha sido
encenada hodiernamente, mesmo assim, seu texto ainda é uma fiel representação
das relações sócio-político-econômicas vigentes no país. Talvez, como disse
Oswald em seu Manifesto Antropófago:
Só a Antropofagia nos une.
Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão
mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as
religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or
not tupi that is the question.
Será, enfim, Antropófago, o homem
que se escondia sob a máscara da cordialidade tupiniquim?
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