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sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

O REI DA VELA: CANIBALISMO CULTURAL EM TRÊS MOMENTOS DA HISTÓRIA DO BRASIL


 

Barbara Salvadori Heritage (University of Missouri)  

Dirce Bortotti Salvadori (UNESPAR)

 


RESUMO: O Rei da Vela de Oswald de Andrade é um marco significativo de dois momentos da história Brasileira: o Modernismo e o Regime Militar. Escrita após a Semana da Arte Moderna, em 1933 (e publicada em 1937), ela representa a culminação de sentimentos de insatisfação e questões mal resolvidas relacionadas à República Velha, a busca por uma identidade nacional, e o desenvolvimento do Capitalismo no Brasil. No entanto, a peça não seria produzida até 1967, pelo diretor Zé Celso e seu grupo, o Oficina, quando as Forças Armadas já haviam derrubado o governo do presidente recém-eleito, João Goulart, e criado uma nova e restritiva constituição, que suprimia a liberdade de expressão e imprensa no Brasil. Essa produção se tornou, então, um símbolo de resistência cultural contra a ditadura militar. O ensaio proposto examina O Rei da Vela e seu significado sociocultural relacionado aos dois momentos históricos já mencionados. Além disso, investiga num terceiro momento, 49 anos após sua icônica produção, a representatividade da obra em relação ao conturbado período atual e suas semelhanças e diferenças com os contextos históricos em que foi escrita e produzida. Ou seja, examina a evolução e relevância da peça nesses três momentos da história Brasileira.

Palavras-chave: teatro, crítica social, identidade nacional.

 

O REI DA VELA: CULTURAL CANNIBALISM IN THREE MOMENTS OF BRAZILIAN HISTORY

 

ABSTRACT: Oswald de Andrade’s play O Rei da Vela (The Candle King) is a significant marker regarding two moments within Brazilian history: Modernism and the Military Regime. Written after the Modern Art Week, in 1933 (and published in 1937), it represents the culmination of feelings of dissatisfaction and unsolved issues related to the Old Republic (República Velha, also known as the “First Brazilian Republic”), the search for a national identity, and the development of Capitalism in Brazil. The play was not produced until 1967, by director Zé Celso and his troupe, Oficina – and by then the Armed Forces had seized the government of new democratically elect president, João Goulart, (with support from the U.S. government) and created a new, restrictive constitution, suppressing Brazilian people’s freedom of speech, press, and expression. The production became, then, a symbol of cultural resistance against the military dictatorship. The following essay examines O Rei da Vela and its socio-cultural meaning in relation to these historical moments. In addition, it considers, 49 years after its iconic production, the play’s representativeness regarding the current period and its potential similarities and/or differences concerning the historical contexts in which it was written and produced. That is, it examines its evolution and relevance within these three moments of Brazilian history.

Keywords: Brazilian theatre, social criticism, national identity.

Introdução

Those who cannot remember the past are condemned to repeat it.” (George Santayana)

 

A ideia manifestada na epígrafe decorre da constatação que nos levou a essa pesquisa. Não fora a leitura anterior de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, e o conhecimento do contexto no qual foi escrita, não teríamos nos dado conta do quanto o processo histórico pode nos surpreender por repetições cíclicas de situações e condições que, apesar de distanciadas no tempo, aproximam-se por semelhanças de contexto.

Foi assim que a realidade social, econômica e política do país, a partir de 2013, culminando com o impeachment de uma presidente da República eleita, em 2016, nos trouxe à memória o texto e contexto da produção de O Rei da Vela, bem como seu conteúdo, prenhe de representação do Brasil de ontem e de hoje.

Criada (1933) e publicada (1937) sob a influência de um contexto nacional sócio-político e econômico de movimento e transformações, O Rei da Vela só seria encenada pela primeira vez em 1967, três anos após a implantação da Ditadura Civil-Militar, pelo Teatro Oficina, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa. O texto manifesta um Oswald de tendências esquerdistas e aponta as contradições sociais da época e a necessidade de uma revolução social.

O que realmente nos chamou a atenção é o fato de que O Rei da Vela foi produzido em um contexto sócio-político e econômico de contornos e aspectos muito semelhantes ao vivido atualmente, em 2016, assim como a sua primeira encenação, pelo Teatro Oficina, também se deu em um contexto semelhante ao atual e ao de sua escritura. José Celso Martinez foi o primeiro encenar O Rei da Vela, que foi escrita durante a primeira fase da ditadura de Getúlio Vargas. Ele o fez, em 1967, em plena ditadura Militar, trinta e quatro anos após a sua escritura. Quarenta e nove anos depois dessa primeira encenação e oitenta e três anos após a sua escritura, a indagação que nos instiga sobre como seria sua interpretação hodiernamente, se dá exatamente pela percepção de que O Rei da Vela continua refletindo, como um espelho, a imagem da sociedade brasileira atual, com todas as suas complexidades, assim como foi na sua escritura.

Oswald foi um homem de vida intensa (1890 – 1954). Filho único de família abastada estudou e “pôde ainda jovem viajar para a Europa (1912), onde entrou em contato com a boêmia estudantil de Paris e conheceu o futurismo ítalo-francês. Voltando a São Paulo fez jornalismo literário” (BOSI, 1995, p. 355). Teve sete esposas; Kamiá, Carmem Lídia, Tarsila do Amaral, Pagu, Pilar Ferrer, Julieta Barbosa Guerini e Maria Antonieta d”Alkmin. Relacionou-se com um grande núcleo de artistas de sua época, de quem colheu influências e influenciou.  

 

[...] Passa a ser o grande animador do grupo modernista, [...] e articula com os demais a Semana. Paralelamente trabalha os romances da ”Trilogia do Exílio”. O período de 23-30 é marcado por sua melhor produção propriamente modernista, no romance, na poesia e na divulgação de programas estéticos nos Manifestos Pau-Brasil, de 24, e Antropofágico, de 28. É também pontuado por viagens à Europa que lhe dão oportunidade para conhecer melhor as vanguardas surrealistas da França. [...] (BOSI, 1995, p. 355).

 

            Em 1922, Oswald fora um dos promotores da Semana da Arte Moderna e era o maior prosélito da ideia que consubstanciava a proposta modernista. A Semana da Arte Moderna, influenciada pelos movimentos que ocorriam em Europa, propunha que a cultura nacional sorvesse a arte estrangeira, mas que dela retirasse apenas elementos apropriados ao enriquecimento da arte nacional. Era uma proposta que visava constituir uma arte nacional do Brasil e para o Brasil. Talvez seus autores não se dessem conta de que já havia uma arte nacional representativa da brasilidade. Mas era a arte do povo, a arte produzida pela grande massa popular que preenchia todos os recantos do país, alijada dos bens de consumo da sociedade urbana e burguesa.

Num país de maioria analfabeta – e assim era o Brasil das décadas de 1920/ 1930 - a literatura e as artes em geral se fragmentavam em duas grandes linhas: a arte popular e a arte erudita. Da arte popular faziam parte o folclore, as festas religiosas, o teatro de revista e o artesanato local e regional, a música sertaneja, o cordel, a santaria, o teatro do circo, o circo, etc. Da arte erudita faziam parte a literatura clássica e moderna, os saraus literários, a pintura, a escultura, a arquitetura, a engenharia, a música clássica, a ópera, etc. Diferentes conteúdos de diferentes universos de vivência. Partindo destas constatações e do fato de que os autores da proposta modernista brasileira eram participantes do grupo da cultura erudita, havemos que pensar em que medida o Modernismo, e mesmo A Semana da Arte Moderna, atingiu realmente o país na totalidade de sua população. 

Apontamos essa questão para nos lembrarmos de que, num país com as dimensões territoriais do Brasil, as grandes cidades e capitais compõem apenas a representação de um pequeno segmento da população, pois no período citado, principalmente, o campo e as cidades e vilas interioranas concentravam um número maior de população que as áreas urbanas. Para que as ideias postas em circulação nos grandes centros chegassem a afetar a consciência e a mentalidade dessas populações um longo tempo se passava, principalmente dadas às precárias condições dos meios de comunicação e difusão do conhecimento da época. Mas não importa, e talvez essa não fosse uma preocupação dos modernistas. No entanto, as referências a este fato são reflexo de nossas indagações e perplexidade diante da repetição de situações semelhantes em diferentes contextos.

            O ano de 1929 foi um ano difícil para a economia mundial e que culminou com o “crack” da Bolsa. No ano seguinte estouraria no Brasil a Revolução de 1930, que culminou com a ditadura de Getúlio Vargas. Muitas famílias abastadas foram afetadas por esses processos, e, segundo Bosi, Oswald de Andrade também teve sua situação financeira afetada. 

 

[...] Dividido entre uma formação anárquico-boêmia e o espírito de crítica ao capitalismo, que então se conscientizava no país, Oswald pende para a Esquerda, adere ao Partido Comunista: compõem o romance de auto-sarcasmo (Serafim Ponte Grande 28-33), teatro participante (O Rei da vela, 37) e lança o Jornal O Homem do Povo. Desdobramento dessa posição foi sua tentativa de criar o romance de painel social: os dois volumes de Marco Zero (43-45). Afasta-se da militância política em 1945 [...] (BOSI, 1995, p. 355).

 

Por inferência, temos que o claro e explícito viés ideológico à esquerda é interpretado preconceituosamente nos países de origem conservadora, seja qual for o regime político em andamento. Uma comprovação dessa questão pode ser vista e analisada na História Moderna dos povos, afinal, os procedimentos de resistência sempre se fizeram sentir, com os países capitalistas reagindo contra o avanço do socialismo/comunismo no mundo, como foi o caso da Guerra Fria entre os EUA e a URSS. Assim também o foi com a resistência internacional à tomada de Cuba pelos revolucionários de Fidel Castro, à China de Mao-Tsé-Tung etc. Capitalismo e Socialismo/Comunismo sempre foram considerados abordagens opostas da realidade, tendo o Capitalismo como a abordagem correta e o Socialismo/Comunismo como a abordagem incorreta. Realmente, isso é histórico, não é fruto de dissensões individuais; trata-se de uma postura geral canonizada, tal qual a luta do  bem contra  o mal. E de tempos em tempos vemos repetir-se na História dos homens os levantes opositivos que dividem os povos em duas grandes categorias: os bons (capitalistas) e os maus (socialismo/comunistas). Inclusive, podemos afirmar que esse posicionamento é uma constante no Brasil e estava presente nas décadas de 1920/1930, quando Oswald escreveu o Rei da Vela; esteve presente na ditadura civil-militar de 1964-1985 e está presente na sociedade brasileira hodierna e pode ser visto e constatado, principalmente, nas mídias e redes sociais.

 

O Rei da Vela, 1933-1937

 

O Rei da Vela é um texto que manifesta um posicionamento político em relação a uma realidade dada. Nele, Oswald elabora a crítica da decadente oligarquia cafeeira e do processo político-econômico pelo qual passa o país, vivendo uma fase ditatorial e submetido às regras do Imperialismo estrangeiro que tudo domina. O olhar depositado sobre a realidade para a elaboração da crítica é um olhar à esquerda, no espectro político.  

Construindo os sentidos do texto a partir do processo de figurativização, Oswald se utiliza deste recurso para mostrar, no espelho, possibilitado pela caracterização dos personagens, a miragem da decadente oligarquia brasileira. Seus personagens manifestam compreensões que Oswald parece ter extraído de uma leitura das consciências mais do que uma leitura das ações reais, num processo de contradições da relação ser-parecer.

Os diálogos estabelecidos entre os diversos personagens chocam pela crueza das revelações, pois Oswald apresenta ao leitor, nos três momentos distintos da peça, as relações e vivências de uma família da tradicional oligarquia cafeeira, em seu processo de decadência econômica. Em sua tentativa de não submergir na pobreza, promovem um casamento arranjado entre a filha do patriarca da família e um burguês capitalista, Abelardo I, industrial das velas e agenciador de empréstimos financeiros pelo processo de usura, devedor dos norte-americanos, a quem presta contas.

O texto apresenta os seguintes personagens dramáticos: Abelardo I, Abelardo II, Heloísa de Lesbos, Joana conhecida por João dos Divãs, Totó Fruta-do-Conde, Coronel Belarmino, Dona Cesarina, Dona Poloquinha, Perdigoto, O Americano, O Cliente, O Intelectual Pinote, A Secretária; Devedores, Devedoras, O Ponto.

A peça divide-se em três Atos:  O primeiro ato se passa num escritório de venda de velas e de usura, em São Paulo, no período da manhã. No segundo ato entra em cena uma ilha tropical da Baía da Guanabara, no período da tarde. No terceiro ato a cena retorna ao escritório e é noite. 

 1º ATO

 

Em São Paulo. Escritório de usura de Abelardo e Abelardo. Um retrato de Gioconda. Caixas amontoadas. Um divã futurista. Uma secretária Luiz CV Um castiçal de latão. Um telefone. Sinal de alarma. Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro a direita correndo sobre rodas horizontalmente e deixando ver o interior de uma grande jaula. O prontuário, peça de gavetas com os seguintes rótulos: MALANDROS – IMPONTUAIS – PRONTOS – PROTESTADOS. Na outra divisão: PENHORAS – LIQUIDAÇÕES – SUICÍDIOS – TANGAS.

Pela ampla janela entra o barulho da manhã e sai o barulho das máquinas de escrever da ante-sala.   (p.63)

 

Nesse caso, os valores fundamentais da narrativa estão presentes nos protagonistas da cena, Abelardo I, o Cliente e Abelardo II. A denominação de escritório de usura Abelardo & Abelardo permite a interpretação de que Abelardo I e Abelardo II sejam sócios no negócio. A cena de entrada do primeiro Ato, com Abelardo I atendendo ao Cliente com o auxílio de Abelardo II, que vai aos arquivos buscar a pasta do tal cliente, revela um Abelardo I como o chefe e um Abelardo II caracterizado como um executor de ordens, algo como um guarda-costas, já que também carrega uma arma à cintura. A caracterização dada pelo esclarecimento “veste botas e um completo de domador de feras”, somada à presença da jaula escondida pela porta de ferro de correr, nos transmite a compreensão de como Abelardo & Abelardo tratavam seus clientes e seus negócios: dois capitalistas sem pudores, em defesa do capital e dos lucros. A manipulação é dada pela pobreza do Cliente, que necessita pagar uma dívida, mas se encontra desempregado. A competência para satisfazer a necessidade do cliente está posta em Abelardo I, que realiza a performance própria de seu papel de agiota, que é receber o que lhe é devido, em primeiro lugar. A presença do arquivo com a denominação das pastas também permite a compreensão de que o que realmente importa é emprestar e receber. A necessidade de uma pasta para arquivar SUICÍDIOS e o diálogo de Abelardo I com o cliente em cena confirma esse entendimento. Assim, o Cliente devedor recebe uma sanção negativa, com Abelardo I a expulsá-lo do escritório, após a menção à utilização da lei da usura, por parte do Cliente.

 Além do já dito, há um diálogo que se configura como metateatral nesta cena, quando Abelardo I diz a Abelardo II: “Mas esta cena basta para nos identificar perante o público. Não preciso mais falar com nenhum de meus clientes. São todos iguais. Sobretudo não me traga mais pais que não podem comprar sapatos para os filhos” (p. 78). Aqui o personagem demonstra conhecer que sua função é representar como age um agiota. E aí ele subverte a narrativa ao dizer: “Sobretudo não me traga mais pais que não podem comprar sapatos para os filhos” (p.78). Os sentidos construídos aí remetem à existência de uma consciência do papel representado e de como este papel de agiota é visto na realidade. Talvez por esta razão Abelardo I se comporte como Pilatos, lavando as mãos sobre as consequências sociais de sua ação de emprestar e receber com juros, por isso não quer saber se para pagá-lo um pai tenha que deixar de comprar sapatos à filha, ou seja, não quer tornar pior o papel do agiota que interpreta, mostrando todas as implicações de suas ações na vida cotidiana das pessoas para as quais empresta.

A contextualização do primeiro Ato, presente na narrativa do personagem Abelardo I, remete à realidade sócio-político-econômica vivida no período. Vale lembrar que em 1929 a economia cafeeira sofrera as consequências da quebra da Bolsa de Nova Iorque, que provocou grandes perdas financeiras aos investidores e que deixou sem preço toda a produção de café, levando à bancarrota os latifundiários, afetando indiretamente toda a grande massa de trabalhadores do campo e da cidade, com altíssimo nível desemprego.  Na sequência de 1930 a 1945, o Brasil vivenciou a experiência de uma ditadura, com o advento da Segunda e da Terceira República – Estado Novo – que marcou o fim da República Velha. A que foi denominada de Revolução de 1930 teve início com a deposição do Presidente Washington Luiz, a dissolução do Congresso Nacional, a revogação da Constituição e o fim da hegemonia das oligarquias que até então haviam se alternado na política do café-com-leite. Getúlio Vargas, considerada a liderança da revolução, assumiu o poder ditatorial. Importante apontar os quinze anos de governo de Getúlio Vargas, pois neste período o país passou por grandes transformações. 

Na sequência dos diálogos do primeiro Ato, Rogério A. Dinis, considera que: “O campo discursivo de O Rei da Vela (2004), com recorte do espaço discursivo resultante da correlação entre os objetos discursivos selecionados, será criado a partir das discriminações feitas com a contribuição das categorias do materialismo histórico” (2009, p.7). Para Diniz, Oswald de Andrade parodia em sua narrativa o Manifesto dos Comunistas, no primeiro Ato, na seguinte narrativa: “Abelardo I não confunda, seu Abelardo! Família é uma coisa distinta. Prole é de proletariado. A família requer a propriedade e vice-versa. Quem não tem propriedade deve ter prole. Para trabalhar, os filhos são a fortuna do pobre...” (ANDRADE, 2004, p.43, apud DINIZ, 2009, p. 7). A demonstração da paródia consta da apresentação do texto do referido manifesto: “A bazófia burguesa sobre a família [...] sobre a abençoada correlação de pais e filhos torna-se ainda mais desagradável à medida que todos os laços familiares entre os proletários são cortados, pela ação da indústria moderna, e seus filhos transformados em simples artigos de comércio e instrumentos de trabalho” (MAX & ENGELS, 2005, p.39 apud DINIZ, 2009, p.7)

Utilizamos esta apresentação de Diniz para confirmar, na análise do texto, a utilização que Oswald faz de sua posição ideológica na construção da narrativa. Embora a peça apresente os conflitos entre os capitalistas e os descapitalizados, o grande vilão da história acaba sendo o sistema, em razão do qual os personagens são manipulados às ações.

Importante apontar no 1º Ato o seguinte diálogo:

 

Abelardo I – Diga-me uma coisa, Seu Abelardo, você é socialista?

Abelardo II – Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro brasileiro.

Abelardo I – E o que é que você quer?

Abelardo II – Sucedê-lo nessa mesa.

Abelardo I – Pelo que vejo o socialismo nos países atrasados começa logo assim... Entrando num acordo com a propriedade...

Abelardo II – De fato... Estamos num país semicolonial...

Abelardo I – Onde a gente pode ter ideias, mas não é de ferro.

Abelardo II – Sim. Sem quebrar a tradição.

 

Nesse texto talvez possamos afirmar que Oswald se insere na peça, demonstrando que sua opção política é provocada pelo contexto, pela ocasião, mas que ele não quebrou seus vínculos com sua condição anteriormente vivida, de membro da classe hegemônica.

Toda a primeira parte do primeiro Ato evidencia as tomadas de posições de Abelardo I em relação à sua prática de agiotagem, à preocupação com a cobrança de suas “vítimas”, com os lucros, e a evidência de um próximo casamento por interesse com a filha de um oligarqua falido. Os diálogos evidenciam que se trata de um casamento por interesses mútuos: ele quer o brasão, ou seja, a substituição de sua condição de burguês sem “nome” pela aquisição de um “brasão”, com a figura do brasão significando aqui nome e poder pelo casamento de interesse: a família descapitalizada vende a moça e ele, capitalista bem sucedido da nascente indústria nacional, a compra, apesar do que indica seu nome: Heloísa de Lesbos.

 Não podemos deixar de apontar na escolha do nome dos personagens as referências satíricas de Oswald à célebre História de Abelardo e Heloísa, famoso casal de amantes da Idade Média, que tiveram seu amor impedido pela moralidade e convenções da época. Além disso, a denominação “de Lesbos” configura uma referência à famosa ilha grega, onde a poetisa Safo teceu poemas de exaltação ao amor por outras mulheres, donde a denominação lesbianismo à homossexualidade feminina.

            O segundo Ato, se passa numa ilha tropical, na Baía de Guanabara, que Abelardo I comprara para a realização de seu casamento com Heloísa. Na cena desenvolvida na ilha parasidíaca aparecem os demais personagens da peça: o Americano, Totó Fruta-de-Conde, D. Poloca, João dos Divãs, Coronel Belarmino, D. Cesarina, Perdigoto e Heloísa e Abelardo I. Os diálogos e narrativas desta cena completam o quadro da sociedade retratada.  Os diálogos livres e francos sobre a homossexualidade dos filhos do Coronel Belarmino, destoam da época de sua produção, já que os preconceitos presentes nessa sociedade certamente não lhes permitiam aceitar e falar com tanta naturalidade sobre as tendências sexuais dos membros da família. O mesmo ocorre com os diálogos entre Abelardo I e sua futura sogra, e entre Abelardo I e uma tia de Heloísa. Confirma nossa percepção o texto de José Eduardo Vedramini, que aponta, em O Rei da Vela, elementos metateatrais e de metalinguagem como instrumentais em relação aos “objetivos declaradamente críticos” do autor: “O Rei da Vela vale-se de personagens alegóricas, com os conflitos de ideias antecedendo os conflitos emocionais entre as personagens. A sátira virulenta e dessacralização de valores, constantes em toda a peça, nascem do universo teatral e retornam a ele, num jogo quase totalmente fechado. (p. 26)”.

A peça chega ao seu termo no mesmo ambiente de seu início, só que já não é manhã, é noite e Abelardo I discute com Heloísa as consequências de sua inesperada falência, decorrente de um roubo. O epílogo tem as características dos dramas, com Abelardo I optando pelo suicídio para não acabar seus dias na prisão. No final da cena o ladrão se revela, é Abelardo II, que além de assumir os negócios, como herdeiro de Abelardo I, assume também o casamento com Heloísa.  Nessa cena, Abelardo I doa a Heloísa à capacidade de prosseguir na sua história de salvar-se pelo casamento. As contradições da relação ser-parecer estão todas expostas, e finalmente Abelardo I morre, enquanto Heloísa assume seu novo Abelardo.

Nos diálogos do terceiro Ato concretiza-se um debate entre as duas ideologias que subjazem parodiadas na peça: capitalismo e socialismo/comunismo.  Ao tornar-se o algoz de Abelardo I, Abelardo II atua como quem assume a função do agiota capitalista e a sua atitude ao chutar o radio quando esse transmite da Rússia, configura-se como uma negação de suas propaladas tendências socialistas.

A peça de Oswald representou, como nenhuma outra narrativa literária do período, a realidade do tempo em que foi produzida, tecendo duras críticas, a partir da satirização, à sociedade de seu tempo, o que permite que lhe atribuamos o sentido de renovação mesmo na perspectiva do Modernismo que então se apregoava. No contexto real do Modernismo, significou também uma opção pessoal do autor por um lado, uma perspectiva ideológica, na perspectiva política em geral, entre membros da Semana da Arte Moderna.

Toda transformação política de um Estado ou país conta sempre com pelo menos duas faces das interpretações possíveis. E assim foi na década de 1930 quando, de entre os membros da Semana da Arte Moderna, saíram os correligionários das duas maiores tendências políticas que têm dividido o país desde então: de um lado o apoio político à ditadura, representada pela AIB (Ação Integralista Brasileira), Partido Da Ação Integralista, que foi criado por Plínio Salgado – um dos participantes da Semana da Arte Moderna de 1922, anticomunista, antiliberal e o primeiro partido nacional de massa. Do outro lado, e em contrapartida a AIB, surgiu a ANL (Aliança Nacional Libertadora) de tendência esquerdista e de oposição ao governo ditatorial, da qual participou Oswald de Andrade.  No Brasil, em reação ao crescimento da AIB, formaram-se pequenas frentes antifascistas que comportavam comunistas, socialistas, e antigos participantes do movimento tenentista (tenentes) insatisfeitos com a aproximação entre o governo de Getúlio Vargas e as oligarquias afastadas do poder em 1930, e que se reuniam na ANL.  

Getúlio Vargas contemporizou com as duas forças políticas antagônicas, tendendo a apoiar o Integralismo, principalmente na sua campanha contra o comunismo representado pela ANL. Porém, em novembro de 1935, com o apoio de Luiz Carlos Prestes, a ANL tenta a derrubada do poder com o que ficou denominado de Intentona Comunista. Getúlio caçou os comunistas e para isso teve o auxílio da AIB. Entretanto, também a AIB foi colocada na ilegalidade, em 1938, por ocasião do levante Integralista, outra tentativa de depor o governo Vargas.

No interregno de 1945 a 1964 aconteceram os procedimentos de redemocratização do país, num período que foi marcado por grandes transformações. Nesta fase governaram o país: Gaspar Dutra, Getúlio Vargas, agora eleito pelo voto direto do povo brasileiro; João Café Filho, Juscelino Kubitschek, Jânio da Silva Quadros e João Goulart.

As tendências esquerdistas deste último presidente assustaram algumas camadas da população brasileira e, novamente, em 1964, o país se via sob uma ditadura e cindido em duas facções ideológicas: de um lado os que apoiavam a ditadura militar, representado por membros da sociedade civil e pela burguesia, de outro os que se contrapunham ao regime ditatorial, com a organização e ação de diversos grupos: PC do B, MR8, Ligas Camponesas, grupos de jovens ligados às Universidades, à Igreja Católica, padres adeptos do Concílio Vaticano II, etc.

E foi nesse contexto ditatorial que José Celso Martinez Corrêa resolveu fazer a primeira montagem de O Rei da Vela, sem, no entanto, preocupar-se em fazer dela uma peça autoral em relação a Oswald de Andrade – mesmo utilizando o conceito oswaldiano de antropofagia.  José Celso levou à cena uma interpretação sua de O Rei da Vela.

 O Rei da Vela, 1967

 O historiador de teatro Thomas Postlewait, na sua perspectiva de análise histórica, aponta questões interessantes sobre a descrição e interpretação das relações entre eventos históricos e seus possíveis contextos. Segundo ele, o desafio está em “especificar não só as características que definem qualquer contexto, mas também os atributos causais que contribuem para o fazer do evento” (2007, p. 198). Com essa tarefa em mente, Postlewait considera como “historiadores de teatro usam o conceito de política (grifo do autor) para definir e explicar as relações entre um evento teatral e suas condições” (p. 198). Ele argumenta que política pode ser entendida de uma maneira mais complexa do que a simples dicotomia “contenção ou contestação, subserviência ou subversão” (p. 204-5): “Política, definida como tipos de ações, atitudes, eventos, e ideias, pode ser atribuída à um número de lugares ou facetas” do evento teatral (p. 208). Consequentemente, ele propõe que as “dimensões políticas” de um dado evento teatral podem existir em diferentes “locais contextuais”, sendo alguns deles: script e texto, intenção dos indivíduos ou agentes que produzem o texto para performance, tradições de drama e teatro vigentes, campanhas nacionalistas e religiosas, teatro como organização, discursos políticos e retóricos da época, ideologias culturais, e recepção do trabalho, entre outros elementos (p. 208).

Usando esse entendimento para nortear nossa análise de O Rei da Vela – e já tendo considerado o texto, as intenções de Oswald, e a ideologia cultural durante o Modernismo – passemos, então, às considerações relacionadas a montagem icônica da peça, pelo grupo Oficina de José Celso Martinez Corrêa (Zé Celso), em 1967.

O Brasil da década de 60 se debatia com muitos dos mesmos problemas e questões vividos durante o período no qual O Rei da Vela foi escrito. O crescente envolvimento de capital estrangeiro no país provocou uma mudança na mentalidade em direção a um modelo socialista e anti-imperialista e influenciou o governo de João Goulart. O golpe militar realizado pela direita brasileira com o apoio dos Estados Unidos foi uma resposta contra essa mudança de pensamento. É nesse cenário político de cerceamento e controle militar que a montagem de Zé Celso acontece.

Não podemos deixar de apontar que ao golpe militar sucedeu-se novamente uma ditadura, cujas características repressoras foram aos poucos se acentuando e incidindo sobre todas as formas de comunicação, atingindo as artes em geral, como a música, o teatro, a literatura, etc., bem como o controle ideológico, cindindo novamente o país em pelo menos dois grandes segmentos: os grupos políticos de apoio à ditadura (direita política) e os grupos de contestação (esquerda política).

De 1964 a 1967, a censura e a repressão ainda eram possíveis de serem disfarçadas sob outras denominações, mas, a partir de dezembro de 1968, com a edição do Ato Institucional número cinco (AI 5) isso se tornou impossível, e o país entrou em processo de franca decadência dos direitos institucionais da pessoa e dos direitos humanos, como a prisão e perseguição de pessoas cujas tendências ideológicas apontassem à esquerda no espectro político, bem como o desaparecimento dos prisioneiros.

Para quem era jovem e vivia nas pequenas e médias cidades do interior do país, a década de 1960 foi um tempo de coisas novas, elas apareciam no mundo e ia chegando devagar ao Brasil: rock-and-roll se disseminando, os Beatles, a guerra do Vietnam, a revolução estudantil na França e nos EUA; no Brasil, de repente a Jovem Guarda, Festivais de Música da Record, a revolução sexual assustando os pais, os hippies estabelecendo a moda, os jeitos, definindo as cores das roupas, com os tons e formas psicodélicos; a Tropicália se estabelecendo, o aumento do consumo e disseminação das drogas, principalmente do LSD; e a liberação da juventude do controle dos pais numa ruptura com os “velhos” padrões, os padrões conservadores, e o surgimento de um mundo novo.

Tudo isso formava um amplo panorama concepto-áudio-visual que dimensionava a realidade para um jovem do Brasil interiorano. A partir de 31 de março de 1964, conhecíamos que o país vivera uma “Revolução” (sic), mas não chegava até nós todos os ecos possíveis e prováveis dessa “Revolução”; primeiro devido à lentidão e precariedade dos meios de comunicação, e, segundo, porque a censura não se fez esperar para tomar o controle do que se podia ou não divulgar.

Foi somente com o AI-5, a dissolução do Congresso Nacional, a cassação de direitos políticos de membros da esquerda, a perda de direitos políticos por dez anos de qualquer cidadão sob suspeita e o acirramento da censura, que os jovens do interior do país souberam o que significava a mudança do regime político que ocorrera em 1964.

Essa digressão tem como objetivo demonstrar que um mundo velho e um mundo novo conviviam no interior de um mesmo contexto. Não era uma convivência pacífica, era uma convivência de confronto, de controle, de tentativa de destruir o novo nas suas origens, já que ele significava uma ruptura com a tradição do controle hegemônico do país pelas elites conservadoras. Mais uma vez direita e esquerda se digladiaram, com a direita mantendo o poder e o controle. O bem (a ditadura, os estrangeiros que “ajudavam” o país a sair da crise econômica e política) contra o mal (a subversão dos socialistas/comunistas e democratas).

 Considerando esse contexto, faz sentido que o conceito de Antropofagia, desenvolvido por Oswald décadas antes, fosse retomado pela classe artística e teatral em sua luta contra a presença estrangeira no país. Segundo David George, além de resgatar do esquecimento o drama do modernista Oswald de Andrade, o Oficina foi responsável por “trazer ao palco pela primeira vez seu conceito estético-ideológico de Antropofagia” (p. 74). Barbara Heliodora menciona em seu artigo de 1971 que “os projetos teatrais realizados no espírito do movimento de 1922 apareceram alguns anos mais tarde, e os únicos textos que seriam considerados pertencentes inteiramente ao movimento foram os escritos por Oswald de Andrade, em particular O Rei da Vela, o qual clama contra a subordinação do Brasil à interferência estrangeira (agora incluindo os EUA)” (p. 51). Yan Michalski, por sua vez, afirma que a produção de O Rei da Vela, pelo Oficina, “desenvolveu uma estética genuína e projeto cultural, o que iniciaria uma nova fase no teatro brasileiro e serviria de inspiração” para vários imitadores (MICHALSKI apud GEORGE, 1992, p. 74).

            Apesar de historiadores de teatro e críticos demonstrarem incerteza sobre as circunstâncias que levaram o Teatro Oficina a escolher O Rei da Vela como peça de inauguração de seu novo espaço teatral (um incêndio em 1966 havia destruído o teatro onde o grupo operava), George afirma que uma única leitura em grupo em determinada ocasião, foi o suficiente para criar entusiasmo e fazer dos membros do Oficina adeptos da visão política e teatral de Oswald de Andrade. A peça escrita mais de trinta anos antes “ressoou no coração de eventos políticos recentes e em relação a resposta passiva da tomada militar. Em três décadas, de ditadura a ditadura, apesar de sinais aparentes de progresso, O Rei da Vela fez parecer que o Brasil tinha estado congelado no tempo” (GEORGE, tradução livre p. 83). George acredita que, como Oswald de Andrade antes deles, José Celso e seus atores estavam convencidos que algumas parcelas da população brasileira “se beneficiavam da estagnação, pobreza, e obsequiosidade ao poder e influência estrangeiros” (tradução livre, p. 85).

            Diferentes criações estéticas de variados artistas compunham esse conturbado período no Brasil - constituindo o movimento que ficou conhecido como Tropicália ou Tropicalismo – incluindo um filme de Glauber Rocha, Terra em Transe, que influenciaria os objetivos de Celso e sua montagem. Segundo George, inspirado pelo filme de Glauber Rocha, Zé Celso, queria nada mais nada menos que encontrar o caminho de volta à uma “era dourada Tupi”, através da criação de uma nova linguagem teatral que iria expressar as mais profundas raízes da cultura brasileira. Além disso, Celso acreditava, baseado nas ideias de Oswald, que para voltar ao Tupi como um criador teatral, ele deveria devorar ou ser devorado pelos colonizadores e suas doutrinas, “por modos artísticos impostos de fora e imitados por brasileiros, por turistas e suas visões exóticas e tropicalistas do Brasil, e consumidas pelos próprios brasileiros” (tradução livre, p. 85). Esse novo manifesto antropófago do Oficina “pretendia ser um ato de ‘descolonização’, uma tomada de consciência através da provocação, ultraje, do ridículo, e mau gosto” (GEORGE, tradução livre, p. 85).

            No entanto, segundo Fernando Peixoto, que fazia parte do grupo durante esse período, a crítica do Oficina não se restringia aos militares ou estrangeiros e era, por sua vez, “um irrestrito descobrimento crítico do Brasil. Uma revisão de valores impiedosa e implacável (...). E no final nós voltamos tudo isso contra o público, incluindo a chamada elite intelectual e política. Porque o que nós fizemos foi desenvolver um foco crítico baseado na zombaria e irreverência. Nada era poupado, nem os mitos nem os estereótipos (...)” (apud GEORGE, tradução livre, p. 86). George afirma que a montagem foi um verdadeiro “pot-pourri Tupi”: “A produção desenvolveu seu processo antropofágico incorporando certas formas populares que haviam sido marginalizadas pelos padrões estéticos internacionais de bom gosto, como o circo, carnaval e revista” (tradução livre, p. 86).

            Seguindo a descrição de Oswald, o primeiro ato da montagem se passa no escritório de usura de Abelardo I – este foi transformado num ambiente circense (incluindo um traje de domador de leões para Abelardo). Hélio Eichbauer cobriu o palco (que havia sido reconstruído como palco giratório inspirado por uma montagem de Bertolt Brecht) com uma lona pintada de amarelo e vermelho para dar um efeito de velas queimadas - e velas de vários formatos e tamanhos foram espalhadas pelo palco. O palco giratório (que dava à audiência maior ou menor visibilidade dependendo de seu movimento) representava a natureza cíclica e efêmera no mundo corrupto e de exploração de Abelardo (GEORGE, p. 88).

Os atores, em colaboração com Eichbauer, criaram seus próprios figurinos. Fernando Peixoto, no papel de Abelardo, misturou seu traje de domador de leões com a bombacha gaúcha (fazendo referência a Getúlio Vargas e João Goulart). Heloísa, no primeiro ato, usa um terno de linho branco, gravata e chapéu – um traje de homem de negócios nos anos 30, que “correspondia simultaneamente a três níveis de significado: a emancipação da mulher, o lesbianismo de Heloísa e o ‘negócio’ que era seu casamento com Abelardo”. Sua maquiagem dividia seu rosto em uma metade azul (indicando o céu tropical), e a outra branca (indicando a brancura fantasmagórica da decadência da sua classe social) (GEORGE, tradução livre, p. 89). Os Abelardos também tinham a face dividida em duas partes, “representando a dualidade social” e aspecto fraudulento da personagem. Essa ideia de dualidade foi inspirada pela peça Arturo Ui de Brecht. Dona Cesarina, sogra de Abelardo, estava vestida em um traje tradicional (para uma senhora de estatura social do período) da cintura para cima e um traje revelador (meia arrastão) da cintura pra baixo (GEORGE, p. 89).

            George ainda chama atenção para os elementos fálicos que, segundo ele, eram “onipresentes’ na montagem e “causaram grande controvérsia entre as audiências, autoridades e alguns críticos” (tradução livre, p. 90). Dona Poloca lambia um pirulito no formato da genitália masculina. Todos os trajes masculinos, assim como as calças de Heloísa no segundo ato, incluíam uma coquilha usada do lado de fora das calças. Segundo Armando Sérgio da Silva, um dos elementos o diretor usou para unificar os três atos foi um tipo de obsessão sexual: sexo no primeiro ato era um instrumento de poder e dominação empunhado pelo macho brasileiro; no segundo ato deu lugar a classe e conchavos políticos; no terceiro, funcionou como um contraponto dramático ao primeiro ato: “Abelardo passou da posição vertical à horizontal, terminando precisamente na clássica posição, de quatro, Abelardo II, seu sucessor, permaneceu ereto com a vela na mão, a mesma que ele iria enfiar no anus de Abelardo I... Um novo rei nascia. O macho exercitou seu poder. O não-macho foi penetrado, sexualmente, pelo poder” (apud GEORGE, tradução livre, p.90).

O papel desempenhado pelo americano, na peça O Rei da Vela, se manifesta em toda a sua perspectiva de dominação quando Abelardo I, pouco antes de morrer, avisa a Abelardo II sobre o “direito de pernada”, ou seja, o estrangeiro não oprimia o país apenas por sua interferência econômica e política, ia além, imiscuindo-se nas relações pessoais, subvertendo as relações, submetendo física e moralmente os dominados, como se dava nos regimes feudais da Idade Média.

George diz: “(...) o paradigma colonial significou que os brasileiros fossem sempre devorados (explorados econômica e culturalmente) por estrangeiros. Os brasileiros deveriam agora devorá-los. Antropofagia, nesse sentido, pode ser traduzida para o que eu chamarei de pot-pourri Tupi: irrestrito uso de um grande número de fontes, seja qual for a origem, sem respeito pela integridade das mesmas” (p.77). George compara O Rei da Vela a Ubu Rei do francês Alfred Jarry. Segundo ele, em O Rei da Vela, Oswald “canibaliza” a peça de Jarry e “filtra” seus temas, personagens e símbolos através de uma “peneira” nacional, os colocando “a serviço de uma realidade brasileira” (p.78). George também afirma que a peça de Oswald parodia, sem nenhuma dúvida, as formas teatrais vigentes nos anos 30: “revista, melodrama, opereta” (p.78). George diz que: “Andrade fatiou sua personagem principal Abelardo da carne de Ubu e cortou em pedaços comestíveis a ambição desnuda e a cobiça dele (...), assim como sua covardice e imoralidade. Ambos as personagens buscam ascensão social por quaisquer meios” (p.78).  Ele afirma ainda que a peça de Oswald deixa clara sua visão sobre o capitalismo americano, que tira vantagem da crise econômica e “vulnerabilidade histórica” do Brasil, aferrolhando o país com uma dívida externa onerosa. Em termos “antropofágicos, o Brasil está sendo devorado por estrangeiros” (p. 79). Nas palavras de Abelardo: “países inferiores tem que trabalhar para países superiores assim como o pobre tem que trabalhar para o rico” (ANDRADE, p. 94).  George diz:

 

Num nível simbólico, a ascensão de um rei da vela, sua queda, e a ascensão de outro, sugere que a estrutura socioeconômica do Brasil é cíclica e inalterável, e que seus eventos são moldados por forças externas. Colocando em termos antropofágicos, enquanto brasileiros devoram-se uns aos outros, eles são devorados por estrangeiros.  Abelardo II, parodiando a antiga história de amor, afirma durante seu casamento: ‘Heloísa vai sempre pertencer a Abelardo. É clássico. (p.79)

 

George também afirma que Oswald “emprestou” essa visão sobre o nosso “sistema econômico Tupiniquim” do Marxismo (p.79). Sobre a sexualidade da peça, George afirma que “se a sexualidade na era dourada Tupi era pura e sem restrições, no contexto de uma estrutura social injusta e imperialismo sexual as relações são reduzidas a transações comerciais e repressão de instintos, o oposto da era dourada Tupi” (p. 82). Essa perspectiva faz com que a totalidade da apresentação de O Rei da Vela na leitura de José Celso Martinez Corrêa e do grupo Oficina transforme-se num retrato da História do Brasil.

 

O Rei da Vela 2013-2016

 

Partimos do princípio de que para entender os interregnos entre  autoritarismo ditatorial e democracia, no Brasil, precisamos conhecer a dinâmica do processo de constituição de nosso modelo político. Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Hélio Jaguaribe, Raymundo Faoro, dentre outros, concebem que a herança do modelo político brasileiro decorre da tradição patrimonialista, mas não da tradição patrimonialista do modelo Greco ou Romano. No caso do Brasil, essa tradição seria herdada do modelo de patrimonialismo vivenciado na Península Ibérica, acrescentado do despotismo oriental, dado pela longa dominação árabe na península. Mas que relações podemos estabelecer entre esta origem e O Rei da Vela de Oswald de Andrade?

 Para responder a essa questão precisamos retomar os estudos do sociólogo alemão Max Weber, que analisou o conceito de legitimidade, estabelecendo os três tipos de autoridades legítimas, que são:

 

[...] a)A autoridade tradicional, que tem por base os valores e crenças nas virtudes sagradas do governante, cujo direito ao poder é conferido pela tradição. Nesse tipo de governo não se leva em consideração a pessoa do governante, mas o princípio do patrimonialismo, onde não há separação entre o que é público e o que é privado.  b) A autoridade racional-legal é o tipo de poder exercido por um indivíduo ou instituição, a partir de uma atribuição legal segundo  uma ordem jurídica racional, com base em leis, que lhe confere o poder. Nesse tipo de poder há clara separação entre o que é público e o que é privado e vigora o princípio da impessoalidade, pois os governantes têm seus poderes limitados e os direitos individuais são garantidos.  c) A autoridade carismática é aquela cujo poder deriva do carisma do líder e se legitima em razão de suas qualidades pessoais.  Esse tipo de autoridade pode aparecer em qualquer momento da história de uma sociedade. O líder carismático é o que mais se aproxima ao protótipo do profeta ou do salvador de uma dada sociedade ou nação.  Na história do Brasil de autoridade tradicional se manifestaram, por muito tempo, os tipos e carismática, com significativas transformações nesta sistemática somente nos anos finais do século XX. (WEBER,1995, apud SALVADORI, 2008, p.49)

 

Apesar de o Brasil ter experimentado os dois modelos de dominação: o tradicional e o carismático, a predominância foi do modelo tradicional, cuja dinâmica consta da não separação entre o público e o privado, ao contrário da dominação racional-legal, onde as duas instâncias estão bem separadas e onde predominam os interesses dos representados e não dos representantes.

Sérgio Buarque de Holanda (1963, p.x apud CHACON,1985, p.19) chama a atenção para o fato de que, sendo o Brasil um país de economia agrária, “com a predominância do tipo primitivo de família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização” do país, atraiu  “vastas áreas rurais para a esfera da influência das cidades. ” Segundo o autor, essa seria a instância motivadora do desequilíbrio social vivenciado no país. Destacamos também que foi ela a agenciadora da construção de relações de poder do tipo dominador-dominados.

Dessas questões destacamos que a maior responsabilidade do modelo para o que acontece no país, a intervalos, continua sendo a predominância, na política, da não separação entre o público e o privado, com os personagens políticos atuando na gestão política pública em defesa dos próprios interesses, ou seja, dos interesses privados. Essa descaracterização da função política transforma o Estado e suas funções num balcão de negócios, donde decorre que a formação dos partidos políticos também se dê em razão dos interesses, mais que das ideologias. Vamireh Chacon  nos diz que os partidos políticos brasileiros são incapazes de “canalizar e mediar as reivindicações sociais, apesar dos esforços setoriais e meritórios, empreendidos em alguns deles” (CHACON, 1985, p. 22). É aqui que introduzimos as questões apresentadas por Oswald em O Rei da Vela e o terceiro período político de nossa análise.

Há, apontando já em 2011 e se concretizando em 2016/2017, no Brasil, como em 1930- 1945, 1964-1985, um movimento de dissolução social, de decadência econômica, desemprego, insatisfações com o sistema, suspeitas de interferência estrangeira, de ruptura com as instituições (mesmo que sub-repticiamente) pela quebra dos contratos sociais e pela invasão dos direitos pessoais e humanos pelo sistema para desestruturá-los.

As tentativas de equilibrar as relações de poder entre dominador-dominados, dadas pela aplicação das teorias desenvolvimentistas ao processo econômico, feitas por governos trabalhistas, entre 2002 e 2014, e entendidas como direcionamento político à esquerda do espectro, inflaram manifestações de desgosto por parte dos grupos de dominação nacionais e quiçá estrangeiros, num crescendo constante que ao final de doze anos transformaram-se em manifestações de ódio explícito – e provocando o acirramento das relações já mencionadas, produzindo a sensação de que o país se encontra à deriva, ou seja, sem uma perspectiva definida de futuro.

Nesse contexto, a antropofagia oswaldiana se manifesta quando o que predomina na gestão política são os interesses particulares, quando os governantes que quiserem ser bem-sucedidos e levarem a termo suas propostas de gestão para o país, não podem atuar com autonomia ou provocar insatisfações nos demais poderes da República, sob pena de ter suas pautas de governança trancadas. Essa perspectiva gerou, de forma mais evidente nos últimos doze anos, uma obrigatória política de coalizões, sem a qual, para qualquer que seja o presidente da República eleito, há riscos de não se conseguir governar o país. Parece ter sido essa a dinâmica que retirou todo o apoio necessário à governabilidade da última gestão da Presidente Dilma Rousseff, que foi deposta em 2016.

A deposição da Presidente Dilma Rousseff fez emergir um contexto sócio-político-econômico extremamente complicado para o país, trazendo à superfície uma sociedade contaminada por ódios, revoltas e preconceitos, exterminando com a famosa cordialidade de sua população. Nesse contexto, as duas principais vertentes do amplo espectro político nacional passaram a se digladiar cotidianamente, nas ruas, nas redes sociais, nas manifestações temáticas, retomando a dualidade defensores do capitalismo versus defensores das massas despossuídas (capitalismo x socialismo/comunismo, como se tem divulgado).

Talvez possamos afirmar que, apesar de não estarmos, como nos dois momentos anteriormente citados, vivenciando uma ditadura nos moldes das anteriores, não estamos também vivenciando um pleno processo democrático, já que medidas extremamente impopulares – conforme podemos avaliar pelas manifestações populares – têm sido votadas e aprovadas pelos representantes da população. A supressão de direitos levada a termo mesmo em vista da contrariedade da população – que elegeu seus representantes para representá-la em suas necessidades e anseios – configura-se como a ruptura das instâncias democráticas de ação. Nessa perspectiva, os representantes da população agem de forma semelhante a Abelardo I e seu substituto, Abelardo II, a quem importa ganhar, independentemente do que se precise fazer, de como se faça e de quais princípios se necessite dispor.

Talvez Oswald tenha sido realmente profético ao evidenciar o predomínio das relações de poder e interesses em nossa sociedade, em O Rei da Vela. O texto de Oswald continua representativo da nossa realidade atual, tanto da dualidade capitalismo versus socialismo/marxismo, quanto em relação à dominação estrangeira sobre o país. O povo brasileiro, apesar de desejar chegar a um desenvolvimento da qualidade que julga que se viva nos países primeiro-mundistas, tem, no plano das ideias, um modelo dado de primeiro mundo, fora do qual não existe a excelência. A situação vigente é dada e representada pela assimilação indiscriminada de concepções, preconizadas por inúmeros instrumentos de dominação (as mídias, principalmente), às quais assimilam sem criticidade.   

O contexto vivenciado demonstra que o conservadorismo patriarcal das décadas de 1930 e 1960 prossegue condicionando as interpretações das ideias das elites econômicas e, em larga escala, também da classe trabalhadora, principalmente daquela classe trabalhadora que nos últimos doze anos ascendeu socialmente, podendo desfrutar de viagens internacionais, lazer de qualidade e melhoria da educação, com acesso à Universidade.

O Brasil, país cordial, de povo gentil, multifacetado pelo convívio caloroso de povos diversos, é apenas um agiota impiedoso que aspira unir-se a uma família brasonada para perder seu complexo de ninguendade (Darcy Ribeiro), mesmo que tenha que entregar-lhe seu dinheiro, suas terras, suas riquezas minerais, etc., como na peça de Oswald.  O que sobrou foram as ideias integralistas da AIB, à serviço do espectro à direita, na política e o conjunto das ideias da esquerda, que já não conseguem se reunir numa nova ANL, mas que se manifestam em contrariedade do contexto vivenciado.

Como nas décadas dos períodos já mencionados 1930-1945, 1964-1985, os primeiros movimentos de contestação da deposição da presidente democraticamente eleita – a resistência – vieram das classes populares, dos artistas e, no contexto atual, o teatro popular, o teatro circense, a música, a literatura, dos intelectuais orgânicos, etc.  A grande novidade é a adesão de algumas artes consideradas eruditas aos propósitos das classes populares. Não soubemos que a peça de Oswald tenha sido encenada hodiernamente, mesmo assim, seu texto ainda é uma fiel representação das relações sócio-político-econômicas vigentes no país. Talvez, como disse Oswald em seu Manifesto Antropófago:

 

Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

Tupi, or not tupi that is the question.

 

Será, enfim, Antropófago, o homem que se escondia sob a máscara da cordialidade tupiniquim?

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

ANDRADE, Oswald de. Obras Completas. VII Teatro. A Morta. Ato lírico em três quadros. O rei da vela. Peça em três Atos. O homem e o cavalo. Espetáculo em nove quadros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S.A. Coleção Vera Cruz (Literatura Brasileira) Volume 147-G. 1973.

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 32ª Ed. São Paulo: Cultrix, 1995.

CHACON, Vamireh. História dos Partidos Políticos Brasileiros. Discurso e práxis de seus programas. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2ª Ed., 1985.

DINIS, Rogério A. “O Interdiscurso marxista na obra O Rei da vela de Oswald de Andrade”. http://www.foz.unioeste.br/~eventos/sepecel/artigos_sepecel_2009/Letras/Diniz.pdf; coletado em 5/1/2017).

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